A obra de Jung, como sabemos, foi profundamente influenciada pela leitura de filósofos europeus, iniciada em sua adolescência . Ele foi tocado sobremaneira por Kant com sua teoria do conhecimento, por Nietszche com seu Zaratustra e por Schopenhauer com suas concepções do mundo como vontade e representação. Este último o impactou de forma especial:
Pela primeira vez ouvi um filósofo falar em sofrimento do mundo,que salta aos olhos e nos oprime, da desordem, das paixões, do Mal, fatos que os outros filósofos apenas tomavam em consideração, esperando resolvê-los mediante a harmonia e a inteligibilidade.Encontrara, enfim,um homem que tivera a coragem de encarar a imperfeição que havia no fundamento do universo.(Jung,1963 .p.84)
Na concepção de Schopenhauer só podemos ver o mundo como representação em nossa mente, ou seja,usamos nosso campo de visão para definirmos os limites do mundo.Para ele haveria uma Vontade Universal que fazia tudo se mover, de forma cega, irracional e insaciável,daí toda a dolorosa história da humanidade e todo sofrimento humano.Esta Vontade não era benevolente e infinitamente boa como o Deus do Cristianismo. Schopenhauer entendia a vida como uma sequência de infortúnios.Via o homem correndo incessante e insaciavelmente atrás da realização de desejos infindáveis que logo eram substituídos por outros terminando num fim trágico , a morte. Seu pessimismo o levou a dizer que :” O homem está condenado à vida e não à morte “( Schopenhauer ,2015). Este seu viés pessimista o instigou a pensar em formas de ressignificar a vida ,auferindo-lhe algum sentido .Para ele,dar sentido à vida seria espelhar a Vontade Universal que era cega ,tentando levá-la a uma correção , a uma modificação, algo que Jung considerava inconcebível , pois como poderia esta vontade espelhar sua imagem sendo ela mesma cega .Depois de muito ler Kant e sua influência sobre Schopenhauer , Jung havia descoberto o erro fundamental do sistema deste :” Ele cometera o pecado mortal de fazer uma afirmação metafísica , hipostasiando e qualificando no plano das coisas , ‘um número, uma coisa em si ” (Jung ,2015B, p.85)
Schopenhauer via na arte e nas religiões orientais (Hinduismo e Budismo) uma possibilidade de alento para o homem, pois ambas poderiam desviá-lo do interminável ciclo da realização de desejos perpetrada pelo ego, em nome da desgovernada e caótica Vontade Universal. Vislumbrava na arte , principalmente na música , uma possibilidade de transcendência de nós mesmos ; do tempo e do espaço e que nos remetiapara fora do ego e sua mediocridade .Da mesma forma cria que a meditação e a compaixão orientais e também a compaixão do cristianismo eram formas de conectar o homem ao Todo Universal do qual ele fazia parte e ao qual deveria se reunificar .Se fazemos parte do Todo e ao mesmo tempo somos o Todo ,devemos então viver compassivamente com nossos semelhantes para trazer harmonia e equilíbrio ao Todo, ensinava o filósofo alemão .
De alguma forma Schopenhauer é,para Jung, quem vai descolar o Mal no mundo do livre arbítrio do homem, diferentemente dos filósofos cristãos que explicavam pela privatio boni toda a maldade do mundo. Para estes o Mal seria fruto apenas da privação do bem,de alguma forma ligada ao nosso livre arbítrio. O Mal em última instância,provinha exclusivamente do homem e com isto Schopenhauer não coadunava, nem Jung.Esta identificação com as ideias de Schopenhauer parece ter aberto um caminho mais livre para Jung circular e se aprofundar neste tema do Mal e incluí-lo em suas concepções teóricas acerca da psique humana e porque não dizer, da “psique” de Deus.
Jung,a seu turno,embora não tivesse uma visão tão pessimista como a do filósofo alemão,logo percebeu que a Vontade Universal de Schopenhauer era um correlato e uma contrapartida da ideia do Deus do cristianismo. Outrossim,Jung desde cedo se questionava da causa de tanto sofrimento no mundo e percebera a diferença entre a profissão de fé e a fé experienciada. Ele não se identificava com a Patrística Agostiniana e nem com a Escolástica representada por Tomás de Aquino. Via nelas tentativas forçosas, nada espontâneas de provar a fé. Jung queria experienciar Deus nele mesmo,derivando e traduzindo a fé de sua própria experiência; não acreditava em fé cega, doutrinada. Talvez por isto tenha dito que sabia(por experienciar) sobre Deus e não que acreditava, quando daquela célebre entrevista à BBC, próximo ao fim de sua vida, quando fora perguntado se acreditava em Deu:”I do not believe , I know”.
Esta ideia de fé experienciada vai ser algo central em sua obra e em seu processo de individuação. Em consonância com o pensamento de Rudolf Otto (2007), de que a fé nasce da experiência intrínseca com o sagrado, o numinoso, o que vem à luz em nós; Jung vai exortar em si a perspectiva da fé pela experiência, algo que ele leva a extremos no seu Livro Vermelho. Livro este em que ele mergulha profundamente na experiência de dialogar com inúmeras representações internas que o inquietavam e que ele pouco conhecia: Alma, Deus,Lúcifer,Abraxas, Filemon, entre outras. É um processo que culmina com o nascimento de Deus nele e no aprofundamento da experiência com sua alma. Nestas vivências introspectivas ele vai buscando sentidos, perscrutando os desígnios de Deus em sua vida, ressignificando nele mesmo a Vontade Universal de Schopenhaur.
A vivência de Jung, é um convite ao aprofundamento de diálogos internos, com nossos sonhos, nossas fantasias, nossa escuridão e nossa luz, com o Bem e o Mal, entendendo que estes predicativos não são categorias estanques e definitivas.Que o que percebemos comoMal pode levar à redenção e o que entendemos como Bem, pode ser hedonismo estéril. Que o Mal inúmeras vezes significa, também, projeções de conteúdos psíquicos que não aceitamos e que queremos manter em nossa Sombra. Conhecer o Mal,então, tem o sentido de ressignificá-lo ,dando-lhe voz , perscrutando-lhe os sentidos, desfazendo em nós este velho maniqueísmo judaico -cristão que afasta e polariza forças que podem atuar para produzir expansão de consciência e o Bem .
Soa como mais libertador reconhecera existência do Malno mundo e em nós mesmos, e tentar compreender os sentidos deste em nossa trajetória rumo à individuação,suas emanações e encantações e suas conexões com o nosso Si-mesmo(Selbest), em busca de mais unidade, integração e integralidade.O caminho da Individuação, de chegar a ser o que se é emessência, exige sempre muita coragem e entrega do ego no sentido de conhecer e integraruma infinidade de forças que se movem no inconsciente, do Bem e do Mal. Será isto uma Arte?
*Luiz Humberto Carrijo dos Santos. Médico psiquiatra.Especialista em Psicologia Junguiana pelo IJEP. Analista Junguiano em formação. luizhcarrijo@gmail.com
BIBLIOGRAFIA
JUNG, C.G . O Livro Vermelho . 4ª ed. Petrópolis. Ed. Vozes .2015
JUNG,C.G. Memórias , sonhos e reflexões .Rio de Janeiro .Nova Fronteira ,2015B
OTTO,Rudolf , O Sagrado.Petrópolis.Ed.Vozes .2007
SCHOPENHAUER,A. O mundo como vontade e representação.Tomo I .São Paulo Editora: UNESP; 2ª ed. 2015
UOL Educação .Schopenhauer: O mundo como vontade e representação.Antonio Carlos Olivieri, https://educacao.uol.com.br/disciplinas/filosofia/schopenhauer-o-mundo-como-vontade-e-representa