Todo sintoma de trama complexa e abrangente evidentemente traz raízes e conexões profundas. Na visão junguiana, aquilo que nos salta aos olhos, nos preocupa ou aterroriza, seja na esfera individual ou na coletiva, merece um olhar cuidadoso. O que está acontecendo comigo ou com nossa sociedade? Qual o sentido de certos acontecimentos ou comportamentos, para onde eles apontam? Estas são perguntas iniciais básicas para se pensar analiticamente uma dada situação.
Estou aqui interessado em debater alguns fenômenos que ganham a atenção de nossa vida coletiva/política no Brasil. Ainda que em parte tais fenômenos também ocorram em outros países, meu foco é nossa história e nossas angústias atuais. Refiro-me à chamada onda conservadora, que se expressa com clareza nos últimos anos. Frequentemente nos deparamos com posições fascistas ou altamente intolerantes, atitudes preconceituosas de diversos tipos, saudosismo de tempos ditatoriais, agressões e busca por culpados e malfeitores.
É claro que tais fenômenos não são recentes em nosso país, tampouco exclusividade dele; no entanto, estão mais visíveis, mais descarados. De forma ambígua, convivem com conquistas fundamentais das últimas décadas, referentes a determinadas direitos, como: igualdade de direitos entre homens e mulheres, casamento entre pessoas do mesmo sexo, adoção por casais homoparentais, leis que condenam rigorosamente atitudes racistas. No campo psiquiátrico (“leis” da ciência), vemos a homossexualidade – e mais recentemente a transexualidade – retiradas do quadro de patologias. Seriam respostas inconformadas diante de tais avanços? Afinal, o que quer o ultraconservadorismo, a misoginia, o racismo?
Um conceito ou ideia que nos ajuda a pensar este quadro atual é o chamado complexo cultural, que vem sendo trabalhado pelos junguianos desde os anos 1990. Obviamente inspirado nos complexos tal como Jung os formulou, eles dizem respeito a fenômenos de ordem emotiva que deixam marcas traumáticas, no âmbito coletivo (social). Assim, quero aqui pensar que tipo de complexo cultural se insurge sobre nossa sociedade, entendo seus sinais (sintomas) acima mencionados. Para tanto, é necessário expor brevemente as características deste conceito, a partir das colocações dos autores Samuel Kimbles e Thomas Singer (2004).
Há um outro nível de complexos no interior da psique do grupo – e no interior do individual no nível grupal de sua psique. Chamamos esses complexos grupais de “complexos culturais”. Eles também podem ser definidos como agregados de ideias e imagens emocionalmente carregadas e que se aglomeram em redor de um núcleo arquetípico.
A teoria dos complexos de Jung pode e deve ser aplicada de outras formas que – até o momento – foi tradicionalmente omitido ou negligenciado pela maioria. Pensamos que a teoria dos complexos de Jung pode e deve ser aplicada à vida dos grupos (e nações) e que estes complexos culturais existem no interior da psique do coletivo como um todo e dos membros individuais do grupo.
Como complexos pessoais emergem do nível do inconsciente pessoal em sua interação com níveis mais profundos da psique, complexos culturais podem ser pensados como se se erguessem a partir do inconsciente cultural em sua interação tanto com o reino arquetípico como com o reino pessoal da psique. Como tais, complexos culturais podem ser vistos como aquilo que forma os componentes essenciais de uma sociologia interna.
Complexos culturais estruturam experiências emocionais e operam na psique pessoal e na coletiva da mesma forma que complexos individuais, apesar de seus conteúdos poderem ser bem diferentes. Como complexos individuais, complexos culturais tendem a ser repetitivos, autônomos, resistentes à consciência, e coletam a experiência que confirma seus pontos de vista históricos.
Complexos culturais tendem a ser bipolares, então quando são ativados o ego grupal ou o ego individual de um membro do grupo se torna identificado com uma parte do complexo cultural inconsciente, enquanto a outra parte é projetada no gancho apropriado de outro grupo ou um de seus membros. Como complexos pessoais, complexos culturais podem prover àqueles que foram pegos em suas potentes redes de histórias e emoções uma certeza simplista a respeito do lugar do grupo no mundo, diante de incertezas ambíguas e conflitantes, por outro lado.
Para resumir, complexos culturais são baseados em experiências grupais históricas, repetitivas, que se enraizaram no inconsciente cultural do grupo. Em qualquer momento oportuno, esses complexos culturais adormecidos podem ser ativados no inconsciente cultural e tomar conta da psique coletiva do grupo; através deste canal as psiques individuais dos membros podem ficar impactadas. A sociologia interna dos complexos culturais pode agarrar a imaginação, o comportamento e as emoções da psique coletiva, e desatrelar forças tremendamente irracionais em nome de suas “lógicas”.
Apesar dos complexos culturais estarem envolvidos positivamente no senso do indivíduo de pertencimento a e identificação com seu grupo de referência, e proverem um centro nucleal para a vida grupal, negativamente, na base deste pertencimento, geram-se estereótipos, preconceitos e toda uma psicologia de ameaça da diversidade. Todo grupo tem um volume de imagens sobre aqueles que são diferentes.
Desta forma, quais complexos estariam em jogo nesta onda de preconceitos, intolerância, agressão à diferença? Bem, não é difícil enxergar que a formação do Brasil enquanto nação começa com violência e subjugação. A escravização de indígenas e negros africanos bastam como imagens traumáticas de nossa história.
Lembremos das ideias de Roberto Gambini (2000) acerca da colonização do Brasil e a escravidão que a seguiu. Tipificados, os índios, e mais tarde os negros, foram vistos como primitivos e inferiores. Assim como os portugueses que os enxergavam dessa forma de fato não os conheciam e não reconheciam as bagagens culturais desses inúmeros povos que aqui viviam, também não conheciam seus próprios inconscientes, tão carregados de primitivismos e inferioridades prontos para serem projetados.
Resumidamente, temos uma elite (branca) em nossa sociedade identificada com valores europeus tradicionais, heterossexuais, machistas – apesar da persona apontar para democracia, mistura, tolerância. Claro que o século XX trouxe questionamentos de várias ordens a tais dominações; como apontei, muitos direitos foram implementados, certas ideologias foram revistas, algum trânsito entre classes sociais foi inaugurado. O ponto é justamente que tais transformações afrontam o complexo cultural originalmente estabelecido em nossa psique grupal enquanto nação. Consequentemente, ele reage a partir de sua carga emocional, como todo complexo.
Minha hipótese aqui é a de que ainda está muito precário o diálogo entre este complexo original e outros complexos alinhados à modernidade e à democracia – até porque a intolerância e a dominação são marcas do complexo original. Portanto, é de se presumir que ele resistirá ao diálogo e procurará impor sua visão conservadora e um tanto primitiva, continuando a projetar essas características nos outros, considerados então inferiores, escória etc.
É justamente por não estarmos estagnados que o conflito aparece. A dificuldade que enfrentamos é fazer do conflito diálogo, para enfim podermos construir algo diante de tais tensões. E assim vamos assistindo, por exemplo, candidatos a cargos importantes de nosso pleito democrático que desfilam preconceito contra mulheres, negros, população LGBTT, além de propostas agressivas como o armamento da população. Esta aliás é uma metáfora e tanto de nossa atualidade: dar armas aos chamados “cidadão de bem”. Isto é, dê munição ao complexo, proteja-se da ameaça do mal “lá fora”. E assim podemos manter a clivagem, obviamente em prejuízo da heterogeneidade e do convívio, ainda que tenso, dos diferentes componentes desta psique/nação.
Para finalizar, gostaria de apontar que a resposta a tais tentativas de silenciamento do diálogo são mais eficazes quando coletivas, fruto de união. Nossa individuação enquanto sociedade, creio, só poderá avançar à medida que nos sentirmos parte de uma espécie de alma comum. Felizmente, também assistimos ao fortalecimento de diversos coletivos e movimentos que partem dos que são minoria em termos de poder. O pertencimento é a marca positiva do complexo cultural, fazer parte de um grupo e não se isolar diante da ameaça me parece o caminho para uma tentativa de transformação real.
Referências
GAMBINI, R. Espelho Índio: A Formação da Alma Brasileira. São Paulo: Axis Mundi/ Terceiro Nome, 2000.
SINGER, T.; KIMBLES, S. The emerging theory of cultural complexes. In: CAMBRAY, J.; CARTER, L. (orgs.). Analytical Psychology – Contemporary perspectives in Jungian analysis. Hove and New York: Brunner-Routledge, 2004.
Dr. Guilherme Scandiucci é Psicólogo e Professor universitário. Mestre e Doutor em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), MA in Jungian and Post-Jungian Studies (University of Essex, Reino Unido). Membro do LAPA – Laboratório de Psicologia Arquetípica. Professor do IJEP.