Minha intenção, com o termo: “Marionetes do Self”, é possibilitar aos analisandos, por meio deste recurso expressivo e criativo, a conscientização da existência do inconsciente, e dos vários “personagens” que habitam nele, muitas vezes interferindo naquilo que imaginamos ser a nossa realidade. Vale lembrar que 80% dos indivíduos nem sabem da existência do inconsciente, e de sua importância e influência no destino humano. Infelizmente, a maioria que o reconhece, tem a ilusão pretensiosa de controlá-lo, com técnicas comportamentais e ou racionais. Acredito que grande parte da nossa atuação “consciente” acontece de forma automática, repetitiva e irrefletida, porque os conteúdos inconscientes, como complexos, sombra, condicionamentos, entre outros, são expressos por meio do Self, que é o verdadeiro marionetista ou titereiro, que domina os vários personagens, fantoches, autômatos ou marionetes, muitas vezes representados por imagens arquetípicas unilaterais, com movimentos e vozes próprias, anárquicas, independentes, conflituosas e autônomas, atuando com liberdade e revelia, deixando o Ego absolutamente rendido.
“Entre o consciente e o inconsciente há uma espécie de ‘relacionamento de incerteza, porque o observador é inseparável do observado e sempre o perturba pelo ato de observação. Em outras palavras, a observação do inconsciente prejudica a observação do consciente e vice-versa”. (C. G. Jung – Aion p. 226)
Toda unilateralidade, assim como os excessos, representa suas compensações opositivas que habitam o inconsciente. Ou seja, um indivíduo com atitude consciente, excessivamente altruísta e espiritualista, tem dentro de si um ganancioso materialista. Da mesma forma, aquele que se identifica com a persona do absolutamente puritano e disciplinado, que faz apologia ao que é ordinário, tem no seu íntimo a perversão, o caos e padrões anormais que, na maioria das vezes, é projetado no outro, associado às emoções de ódio, raiva, rejeição e discriminação. Na dinâmica psicoterapêutica do recurso expressivo das “Marionetes do Self”, estimulamos o cliente a discriminar e diferenciar os vários personagens, ou fragmentos, presentes em sua totalidade psíquica, estabelecendo um diálogo, simbólico e metafórico, entre eles, que podem ser escolhidos e construídos, por meio da imaginação e fantasias, a partir das suas relações extra psíquicas, de personagens advindos dos contos de fadas, da mitologia ou dos sonhos.
Este recurso expressivo é uma excelente ferramenta para ajudar nosso cliente a perceber o quanto que ele está projetando, tanto na sua autoimagem quanto no seu entorno relacional, seus conteúdos inconscientes. Com isso, as tentativas de racionalização diminuem, assim como as tendências de transformarmos nossas sessões analíticas em “papoterapia”, “reclamoterapia”, “queixoterapia”, “relatoterapia”, “conselhoterapia”, “controleterapia”, entre outras formas de relações que fogem do vínculo triangular entre analisando, analista e a análise, devido aos mecanismos de defesa, tanto do pretenso analista quanto do analisando, que servem para manter ambos na zona de conforto do Ego e distantes do propósito da análise.
Jung constatou, ao longo de sua obra, que nosso psiquismo é multifacetado, carregando uma miríade de componentes, fragmentos, personagens, imagens, símbolos, potencialidades, sentimentos, pensamentos, intuições, sensações e emoções, que se relacionam de diferentes maneiras e que as palavras não podem e nem conseguem expressar tão bem quanto as manifestações criativas. Por isso, quando estimulamos, conscientemente, a confecção ou escolhas das marionetes para nossos clientes, e pedimos para que eles lhe deem movimento e voz, começa acontecer a ampliação da consciência, por meio dos diálogos entre os fragmentos que habitam o Self e o Ego, restabelecendo assim o eixo si-mesmo-ego. Ou seja, este recurso é dinâmico, dialético e confrontador, muito diferente da proposta da caixa de areia. Muitos clientes, que tiveram experiencias com o Psicodrama e a Constelação Familiar, disseram que esse recurso das “Marionetes do Self” se aproxima destas vivencias, apesar de lembrarmos, continuamente, que todos os elementos são aspectos do próprio cliente, mesmo que representando um familiar, amigo, amante, inimigo ou personagens advindos da mitologia ou contos de fadas. O que precisa ser transformado é a nossa relação intrapsíquica com esses personagens. Porque, quando meu pai interno for ressignificado, meu pai externo e real, mesmo que continue sendo um crápula, não terá mais influência negativa, paralisante, depreciativa, punitiva, culposa, penitente, abandonica ou patológica na minha existência.
“Da mesma forma que outros personagens de minha imaginação, trouxe-me o conhecimento decisivo de que existem na alma coisas que não são feitas pelo eu, mas que se fazem por si mesmas, possuindo vida própria. Filemon representava uma força que não era eu. Em imaginação, conversei com ele e disse-me coisas que eu não pensaria conscientemente. Percebi com clareza que era ele, e não eu, quem falava. Explicou-me que eu lidava com os pensamentos como se eu mesmo os tivesse criado; entretanto, segundo lhe parecia, eles possuem vida própria, como animais na floresta, homens numa sala ou pássaros no ar” (C. G. Jung – Vida Simbólica p. 78)
O verdadeiro tesouro não pode ser devorado pela traça, ferrugem ou mofo, também não pode ser roubado e permanecerá pela eternidade, mesmo quando tudo mais for dissolvido! Ele é a nossa essência, mas só podemos tomar consciência dele ao sabermos o que somos e, não, quem somos. Mas, para sabermos o que somos, precisamos nos despojar da zona de conforto que as personas funcionais nos possibilitam com títulos, credenciais, currículo acadêmico, portfólio e outras referências, colocando em risco quem somos, para compreendermos o que somos, transcendendo os códigos de conduta e a moral, integrando estética com ética, sem fugir do confronto com a sombra. Só assim estaremos servindo a Anima Mundi, conscientes de que, enquanto existir um ser humano sofrendo, em alguma parte do mundo e independente das suas crenças ou atitudes, também estaremos sofrendo!
A experiência imaginativa não é uma mera reprodução racional ou dos dados sensoriais, mas uma possibilidade transformadora das unilateralidades, proporcionando a integração dos opostos. “Minha própria psique inclusive transforma e falsifica a realidade, e isso a tal ponto que preciso recorrer a meios artificiais para determinar como são as coisas exteriores a mim” (C. G. Jung p. 353)
É difícil aceitar que a realidade é o resultado subjetivo, criativo e complexo que cada indivíduo produz, em função das suas “lentes”. Por isso, a realidade comporta infinitas verdades. Essas “lentes” são formadas a partir da nossa concepção, com forte influência do período gestacional e os três primeiros anos de vida, acrescidos a todos os aprendizados, condicionamentos, dramas, traumas, alegrias, dores e prazeres vivenciados até o momento presente. Por outro lado, o chamado evolutivo, intrínseco à alma, invariavelmente irá nos remeter à angústia e às crises evolutivas, impondo desenvolvimentos, e suas consequentes rupturas, separações e crises, ativando os mecanismos de defesa, em função da resistência do ego em abrir mão da zona de conforto do conhecido. Porque, para o ego, não é fácil aceitar sua finitude, reconhecer a atuação dos complexos que tiram sua autonomia e os condicionamentos, que interferem na “lente” que usamos para nos ver e ver o mundo, criando a percepção singular e única dos fenômenos que acontecem na realidade, tornando tudo subjetivo.
“Essa atividade autônoma da psique que não pode ser explicada nem como ação reflexa a estímulos sensórios nem como órgão executivo de ideias eternas é, como todo processo vital, um ato continuamente criativo. A psique cria realidade todo dia. A única expressão que posso usar para essa atividade é fantasia” (ibidem, p. 52).
Quando Jung se refere à fantasia ou a uma imagem de fantasia não está se referindo ao reflexo direto de um objeto exterior, mas a um conceito derivado do uso poético (do grego auto “próprio”, poiesis “criação”), indica que a psique, tal como toda produção expressiva, independentemente de ser considerada artística, não é apenas repetição, mas criação de realidades. A mente, que mente, por conta de suas “lentes”, projetivas e auto projetivas, inventa, compulsória e espontaneamente, ficções, histórias, dramas, fantasias, ou seja, suas realidades subjetivas. Criatividade e a expressão artística são tributos, instintivos, da natureza humana, e servem para aplacar a angústia existencial, diante do mistério da vida. Por isso, desde tempos imemoráveis, a raça humana utiliza as expressões criativas como forma de expressão dos seus conteúdos emocionais, diante dos afetos existenciais.
A imagem interna é uma grandeza complexa que se compõe dos mais diversos materiais e da mais diversa procedência. Não é um conglomerado, mas um produto homogêneo, com sentido próprio e autônomo. A imagem é uma expressão concentrada da situação psíquica como um todo e não simplesmente ou sobretudo dos conteúdos inconscientes. É certamente expressão de conteúdos inconscientes, não de todos os conteúdos em geral, mas apenas dos momentaneamente constelados. Essa constelação é o resultado da atividade espontânea do inconsciente, por um lado, que sempre estimula a atividade dos materiais subliminares relevantes e inibe os irrelevantes. A imagem é, portanto, expressão da situação momentânea, tanto inconsciente quanto consciente. Não se pode, pois, interpretar seu sentido só a partir da consciência ou só do inconsciente, mas apenas a partir de sua relação recíproca. (Jung, Tipos Psicológicos /1991, p. 418)
Não é a obra artística que interessa, nem a sua qualidade estética, mas a atividade criadora, a vivência, a expressão em si e as consequências emocionais desencadeadas por esta experiência. A expressão tem valor apenas para o processo terapêutico. Tentar interpretar, é cair no erro, pois, a arte orientada em terapia, serve apenas como espelho do mundo interno do cliente. Não é um espetáculo, mas apenas um modo individual de contato com o inconsciente.
Os contos de fada têm origem nas camadas profundas do inconsciente, comuns à psique de todos os homens. Pertencem ao mundo arquetípico. Por isto, seus temas reaparecem de maneira tão evidente e pura nos contos de países os mais distantes, em épocas as mais diferentes, com um mínimo de variações. Este é um dos motivos porque os contos de fada interessam à psicologia analítica. (Nise da Silveira, Imagens do Inconnciente, p. 119)
As marionetes adquirem vida pela vida de seu criador que as animam. De início, elas são apenas objetos de identificação projetiva, que depois de estabelecerem, metafórica e simbolicamente, o diálogo intrapsíquico do eixo ego/si-mesmo, possibilitando a percepção consciente da existência dos vários personagens que habitam o Self, cada qual aprisionado em sua fala monotemática, as marionetes irão adquirir valor de objeto de transição, possibilitando mudanças nas relações com os outros de nós mesmos e, consequentemente, com os outros dos nossos entornos relacionais. Por isso, aos reconhecermos e nos relacionarmos com as marionetes, contribuímos para a construção ou reconstrução de si mesmo, nos aproximando do autoconhecimento e do processo de individuação.
As marionetes, como já disse, podem ser criadas, por meio de inúmeras técnicas expressivas, como argila, papel marche, esculturas, ou até figuras desenhadas, ou escolhidas com a oferta de miniaturas, fantoches ou dedoches de contos de fadas, personagens míticos, recortes, etc. O importante é que elas representam aspectos unilaterais e monotemáticos, reconhecidos na vida do analisando. Ou seja, mesmo que a pessoa queira representar sua mãe, seu pai, irmão, esposa, filho, amante, chefe, vizinho entre outras pessoas importantes e presentes na sua vida, é necessário compreender que esses elementos existem e tem vida própria no psiquismo dela. E isso vale para os personagens dos contos e mitos.
Um exemplo que sempre uso é o Conto da Chapeuzinho Vermelho. Nele temos cinco personagens, cada um está aprisionado na sua temática e todos eles existem em nosso íntimo, com maior ou menor investimento da energia psíquica. Neste conto tem um elemento que é curioso e quer aventurar-se pela vida, que é a Chapeuzinho. Outro que se sente abandonado, carente e enfraquecido, que é a Vovozinha. O terceiro é aquele que busca prazer, satisfação instintiva oral e sexual, que é o Lobo. O quarto elemento é o Lenhador, que tenta castrar os desejos, os impulsos e as fantasias, mantendo a ordem e a condição ordinária da vida e, por fim, temos o quinto elemento, que é a Mãe que, provavelmente, por mandar sua filha levar o bolo para a vovozinha, que é a mãe dela, deve representar uma mulher querendo se livrar do fado de ser mãe e de ser filha, para libertar a mulher, livre, leve e solta! Desta forma, quando apresentamos estes cinco elementos e estimulamos nosso cliente em reconhecer as vozes, unilaterais e monotemáticas, de cada um deles, começa surgir a ampliação da consciência e a percepção de que alguns deles tem mais investimento energético do que outros.
Este texto foi criado em fevereiro/2019, para a aula: “Marionetes do Self”, ministrada no curso de especialização em Arteterapia e Expressões Criativas, que o IJEP oferece nas cidades do Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo.
Neste texto amplio, à luz da psicologia analítica de C. G. Jung, a técnica expressiva e projetiva: “Marionetes do Self”, como caminho do autoconhecimento em busca da realização.
Agradeço comentários e divulgação!
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*Waldemar Magaldi Filho – Psicólogo, Analista Junguiano Didata do IJEP, Especialista em Psicologia Junguiana, Psicossomática, Arteterapia e Homeopatia; Mestre e Doutor em Ciências da Religião. Autor do livro: “Dinheiro, Saúde e Sagrado – Interfaces Econômicas e Religiosas à Luz da Psicologia Junguiana”, Ed. Eleva Cultural, Coordenador dos Cursos de Pós-Graduação que titulam especialistas em: Psicologia Junguiana; Psicossomática; Arteterapia e Expressões Criativas do IJEP – Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (www.ijep.com.br), oferecidos nas cidades de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo.