Por Claci Maria Striede
A metanóia pode ser compreendida como uma crise de transição, que envolve aquilo que vai além da razão e que exige transgressão para que as mudanças ocorram. O processo de análise tem como objetivo proporcionar a metanóia, que pode ocorrer em qualquer idade cronológica do indivíduo e em diferentes etapas da vida humana, porém nessa ampliação irei fazer uma convenção e me ater mais na crise da meia-idade, período em que há uma tendência natural de ocorrerem mais experiências de metanóia, resultando em transformações sobre a visão de mundo, mudança de crenças e de paradigmas. Pode ser vista como uma conversão, como dizia o apóstolo Paulo, momento em que o mundo exterior se volta para o interior e o tempo linear e sequencial de Khronos vai adentrando em uma dimensão profunda – tempo de Kairós – que envolve o recolhimento e o mergulho no inconsciente. Essa jornada favorece o desenvolvimento e a ampliação da consciência com o confronto intrapsíquico de polaridades, que envolvem personas e sombras, permitindo uma caminhada rumo ao Self. Em termos práticos e com o pensamento voltado para outra metade da vida que resta, é um período em que buscamos descobrir o nosso propósito de vida e o significado dos nossos conflitos internos, que ficaram adormecidos no inconsciente e em algum momento afloraram em forma de sintomas, como: a depressão, o abuso de álcool e de drogas ilícitas, as doenças graves, as perdas significativas, as mudanças de trabalho, entre outros. As feridas aparecem, exigem um pensamento realista e uma harmonia com o universo, podendo resultar em ressignificação de velhos padrões. Segundo James Hollis, é morte e renascimento em transição: “Rever a vida a partir da posição da segunda metade dela requer a compreensão e o perdão do inevitável crime da inconsciência. Mas deixar de ficar inconsciente na segunda metade da vida significa cometer um crime imperdoável” (2019, p. 27).
Em termos gerais e, de acordo com a influência da tradição histórica, social e cultural, a meia-idade ocorre entre os 40 e 65 anos e compreende um processo de revisão e reavaliação da nossa vida diante de novas realidades. No contexto da família, é período em que os filhos estão crescidos e foram para o mundo e, no contexto biológico, ainda estamos em boa forma física, cognitiva e emocional. Para a maioria das pessoas, é considerada a melhor fase da vida, embora aponte para alguns declínios. No trabalho, é a fase do auge de ganhos e na sociedade continuamos exercendo diferentes atividades. Mesmo diante da aparente realização, surgem questionamentos: quem sou eu, além dos papéis que exerci até agora? Em que parte da vida passei a esquecer de mim? Demandas sobre o sentido da vida e o que fazer no futuro promovem um mergulho nas profundezas da alma e, ao mesmo tempo configuram-se em possibilidade de renovação, metaforicamente expressa por Jung: “Precisamente ao meio-dia, o Sol começa a declinar e esse declínio significa uma inversão de todos os valores e ideais cultivados durante a manhã (…) É como se recolhesse dentro de si os próprios raios” (2013, p.354). Ele complementou, afirmando que entramos despreparados na segunda metade da vida: “Não podemos viver a tarde de nossa vida segundo o programa da manhã, porque aquilo que era muito na manhã, será pouco na tarde, e o que era verdadeiro na manhã, será falso no entardecer” (2013, p. 355).
Aos poucos, ocorrem as mudanças físicas nas habilidades sensoriais e psicomotoras e trazem o reconhecimento da mortalidade. As mulheres presenciam o climatério, que é o período de transição entre a fase reprodutiva e fase da ausência da reprodução, e a menopausa, com a parada permanente da menstruação. Neste sentido, a palavra klimacton, que surgiu do grego, representa crise ou período de mudança. Para algumas mulheres, os sintomas clínicos aparecem em forma de sudorese, fogacho, palpitação, enxaqueca, insônia, alteração de humor, perda de energia e irritabilidade, que também podem estar relacionadas com as mudanças nos papéis, nos relacionamentos e nas responsabilidades, passando a optarem pela reposição hormonal para amenizarem perdas. Os homens, por sua vez, sentem um declínio gradual dos níveis de testosterona, que também envolve o declínio da fertilidade, a dificuldade em conseguir ereção e a frequência de orgasmo, envolvendo um período denominado andropausa. Na busca de suprir dificuldades, os remédios tomaram espaço no universo masculino e são aliados nas disfunções eréteis, mas quando usados incorretamente, podem causar problemas. De uma forma geral, o estresse desencadeia problemas físicos e psicológicos, aumentando o risco de doenças em forma de alcoolismo, depressão, hipertensão arterial, obesidade, câncer, diabetes, doenças cardiovasculares, etc.
Ao falar da etapas da vida humana, Jung nos apresentou a revolução psíquica que ocorre na metade da vida (2013, p.343). É um momento de contração da vida, de dedicar-se ao Si-mesmo, ao potencial da totalidade. Os interesses antigos são substituídos por novos, ocorrendo mudanças nas profundezas da alma. Os homens tendem a voltarem suas atenções para casa, as mulheres para o mundo e questionamentos podem resultar em inversão de valores. Vindo ao encontro, Rudolf Steiner deixou-nos como possibilidade de ampliação os estudos sobre os setênios. Segundo o autor, a partir dos 42 anos, ocorre a maturidade, a profundidade e a espiritualidade. Dos 42 aos 49 anos, ocorrem questionamentos sobre o altruísmo e sobre manter a fase expansiva, com a presença da andropausa e a menopausa. Dos 49 aos 56 anos é a fase de ouvir o mundo, a vitalidade declina e surge a fase inspirativa ou moral. Dos 56 aos 63 anos ocorre a fase da abnegação, em que os reflexos e a mobilidade passam a sofrer alterações, ganhando espaço a etapa mística ou intuitiva. Erik Erikson, apresentou-nos a sétima crise para definir essa fase – geratividade versus estagnação – podendo surgir a preocupação com a orientação da próxima geração. Para muitas pessoas, é uma entre muitas transições, não necessariamente resultando em crise.
De acordo com Papalia, D. E., Olds, S. W., & Feldman, R. D. (2006, p. 458-459), na fase da meia-idade as mulheres se tornam mais assertivas e focais e, os homens emocionalmente mais expressivos, que pode ser visto na psicologia analítica junguiana como um caminho de inversão natural de enantiodromia – tensão criada entre consciente e inconsciente, que envolve o fluir da energia em um movimento pendular e consiste em passar para o outro lado do pólo – favorecendo uma complementação anteriormente desconhecida. Com a crise da meia idade, o homem que geralmente é mais assertivo e focal, torna-se mais emocional. Em contrapartida, a mulher que é mais emocional, passa a ser mais assertiva e focal. Pode ser considerado o momento oportuno em que o homem vai aprender a lidar com o lado feminino que não conhecia e, a mulher irá conhecer o universo masculino que desconhecia, influenciando o seu modo de pensar, sentir e agir. Com essas mudanças, o período também é marcado por aumento do número de divórcios e maior dependência de amigos para apoio emocional e orientação prática. Ao mesmo tempo, o divórcio e o segundo casamento dos filhos afeta relacionamentos entre avós e netos, criando novos papéis de parentesco. Nesta fase, permanecemos envolvidos com os filhos adultos, que por motivos econômicos, continuam morando conosco e, também tornamo-nos cuidadores dos pais idosos e doentes. Igualmente, a nossa capacidade de resolver problemas práticos é forte, a nossa criatividade e produtividade dependem de atributos pessoais e forças ambientais, com a transição de papéis em função da longevidade, mudança econômica e social, que nos incentiva para aperfeiçoamento das nossas habilidades em forma de estudos. Essa mistura de mudanças lembram Clarice Lispector, que em uma das suas poesias disse: “Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite”.
Na mitologia, Hades representa o deus das profundezas, deus dos mortos ou do mundo inferior. Os gregos não pronunciavam seu nome por temor e o denominavam de “o ilustre ou o bom conselheiro”. Podemos associá-lo ao inconsciente pessoal e coletivo, onde são guardadas memórias, pensamentos e sentimentos reprimidos. Ao mesmo tempo que representa isolamento e depressão, pode simbolizar o poder da renovação com o uso da expressão criativa ao nos depararmos com o mundo interior. O arquétipo Hades representa a possibilidade de mergulharmos no inconsciente e valorizarmos o autoconhecimento, que vem ao encontro das vivências na metade da vida.
Assim sendo, podemos afirmar que a metanóia é um caminho para a individuação, sendo um período oportuno de olharmos para as nossas sombras e buscarmos a completude. Ela nos convida para realizarmos os projetos que não concretizamos antes, em função de muitos fatores, mesmo que isso provoque uma mudança radical da nossa vida. Segundo Jung, projetos não realizados representam um depósito de velharias e, são como brasas, que continuam acesas, mesmo debaixo de cinzas amarelecidas (2013, p.351). Para complementar, cito mais uma frase de Jung, que descreveu bem esse período das nossas vidas: “Quanto mais nos aproximamos do meio da existência e mais conseguimos nos firmar em nossa atitude pessoal e em nossa posição social, mais nos cresce a impressão de havermos descoberto o verdadeiro curso da vida e os verdadeiros princípios e ideais do comportamento” (2013, p.351).
O processo de individuação é um dos principais pressupostos teóricos de Jung, que envolve um olhar amplo e complexo de diferenciação psicológica como meta da evolução e do desenvolvimento integral da personalidade, sendo necessário um investimento energético para engajar o ego na busca da integração dos aspectos desconhecidos e sombrios que estão no inconsciente, promovendo o autoconhecimento e significado existencial. Para Jung, Salomé e Filemon eram a sua representação intrapsíquica que permitia estabelecer relação, entender seus conflitos, iluminar e transcender, favorecendo seu processo de individuação. Dessa forma, ele realizou a unidade psicológica entre os aspectos conscientes e inconscientes, que contém a vida não vivida e o potencial não realizado, como afirma Stein: “Tornar-se o que a pessoa já é potencialmente, mas agora de um modo mais profundo e consciente” (2006, p.158).
Diante do exposto, podemos dizer que, a metanóia na crise da meia-idade, predispõe o ego a ser mais suscetível e de alguma maneira mais comprometido com o processo de individuação, permitindo o seu encontro com o Self. Para tanto, pode ser vivida como uma crise necessária e oportuna para e reorientar a personalidade e reavaliar a vida com novo sentido e significado. É um processo de transformação diante do que ruiu, que não precisa ser visto como algo patológico, mas como oportunidade de ressignificar padrões, cuidando com responsabilidade e satisfação de todos os aspectos envolvidos. Neste sentido, evidencio o otimismo de Fernando Pessoa sobre a longevidade: “Não importa se a estação do ano muda…Se o século vira, se o milénio é outro. Se a idade aumenta…Conserva a vontade de viver, não se chega a parte alguma sem ela”. E para exaltar as inúmeras possibilidades que a vida oferece, encerro minhas ampliações com Gonzaguinha e a música O que é? O que é?: “Viver, e não ter a vergonha de ser feliz. Cantar e cantar e cantar, a beleza de ser um eterno aprendiz (…) Mas e a vida, ela é maravilha ou é sofrimento? Ela é alegria ou lamento?” Mergulhar nas profundezas da alma muitas vezes é inevitável e faz parte da amplitude de viver. Intensificar o poder de renovação é opcional e nos permite transcender.
Claci Maria Strieder, analista em formação pelo Ijep.
Brasília/DF – Contato: (61) 99951.0003 – clacims@gmail.com
Leituras de apoio:
BRANDÃO, J. – Mitologia Grega Vol. 1, Petrópolis: Vozes, 1986.
ERIKSON, E. H. O ciclo de vida completo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
HOLIS, James. A passagem do meio – Da miséria ao significado da meia-idade. São Paulo:Paulus, 2019.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. 10ª edição. Petrópolis: Vozes, 2013.
________________O desenvolvimento da personalidade. 14ª edição. Petrópolis: Vozes, 2013.
LIEVEGOED, Bernard. Fases da vida. Crises e desenvolvimento da Individualidade. São Paulo: Editora Antroposófica, 1994.
LISPECTOR, C. A Hora da Estrela. 12 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
PAPALIA, D. E., OLDS, S. W., & FELDMAN, R. D. Desenvolvimento humano (8ª ed.). Porto Alegre: Artmed, 2006.
PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. Vol.II. (Organização e fixação de inéditos de Teresa Sobral Cunha). Coimbra: Presença, 1990.
STEIN, Murray. Jung: o mapa da alma, uma introdução. São Paulo: Cultrix, 2006.
Claci Maria Strieder – 21/08/2020