Para o cinéfilo Junguiano, os filmes de super-herói são um prato cheio. Está na cara o DNA mito-poético desses filmes. The Flash? Mercúrio. Super-homem? Moisés. O Coringa? É uma variação sinistra do trickster, o malandro, o mesmo arquétipo de Loki, Perna-Longa, Papa-Léguas, etc. Outros personagens dos HQs saem diretamente da mitologia; é o caso de Thor e da Princesa Diana, vulgo Mulher-Maravilha. Até o temível Thanos, vilão-mor do Universo Marvel, é uma corruptela de Tanatos; “morte” (Θάνατος) em grego antigo.
Mas algo acontece nos blockbusters norte-americanos, de 2000 para cá. Assistimos as desconstruções criativas dos contos de fada à la “Shrek”, “Frozen” e “Malévola”. Cresceu, em paralelo, a importância do subtexto político nos filmes de super-héroi. Lembram do tema central de “Pantera Negra”? Se isolar na tradição ou partir para a luta armada? T’Challa ou Killmonger? Ou “Mulher Maravilha”, que fez uma licença poética com a mitologia grega para passar a sua mensagem, para lá de atual, a respeito do empoderamento feminino.
No caso de “Aquaman”, o seu mito-base é o reino perdido de Atlântida. No conto de Platão, a Atlântida era uma superpotência naval fundada pelo deus dos mares, Poseidon. Era a mais avançada das civilizações, tendo o seu auge dez mil anos antes de Cristo. Acabou no fundo do mar por causa do pecado capital dos gregos: a hibris (orgulho excessivo), punida pelos deuses.
Em “Aquaman”, o sentido original da história foi trocado por uma analogia do conflito político que está no coração do mundo Ocidental. De um lado, uma esquerda pós-moderna que tem por bandeira as políticas identitárias. Do outro, uma direita que quer preservar o legado da nossa cultura, seja ele a moralidade judaico-cristã, o pensamento greco-romano ou as ideais de racionalidade e progresso do Iluminismo. Seja qual for a sua trincheira ideológica, uma coisa é certa: a dificuldade de dialogar com quem vota diferente da gente. “Aquaman” capta isso bem, com a sua mensagem de tolerância às diferenças. Vou explicar isso melhor nos próximos parágrafos. Pra quem ainda não viu o filme… Alerta: spoilers!
Vamos começar com o representante da “direita”: o Rei Orm (Patrick Wilson), vilão do filme. Ele é branco, loiro dos olhos azuis e racista. Ele despreza o meio-irmão, Arthur Curry (Jason Momoa) – vulgo Aquaman – por ser um “mestiço”. Orm é um tradicionalista assumido e mostra-se orgulhoso de sua ascendência real (só da linha paterna, diga-se). Tem espírito guerreiro e deseja restaurar a grandeza e glória da Atlântida. Para tal, quer unir os Reinos marítimos e se coroar o Mestre dos Oceanos. O seu objetivo último é invadir a superfície (nós) e acabar com a poluição dos mares.
Orm é uma paródia perversa do herói solar, a figura máxima da nossa civilização. Nesse século, a depender com quem você converse, ele virou o símbolo antiquado de um patriarcado revanchista. Digam-me: é tão difícil assim enxergar Orm como um Trump subaquático (“Make Atlantis Great Again”)? Reparem como os dois se parecem na sua boçalidade, no seu temperamento belicoso, na sua impetuosidade, na sua xenofobia? Até os portões da Atlântida lembram a fronteira entre o México e os Estados Unidos, lotada de carros, fortemente vigiada. Os próprios responsáveis pelo filme admitem a ligação entre essa cena e a relação tensa dos EUA com os seus vizinhos do sul.
Noutro espectro político temos Aquaman. Na sua história, elementos basilares dos mitos de origem de herói. Além da coragem, força bruta e uma bússola moral inabalável, Arthur tem uma genealogia 100% heróica: filho pessoas comuns e da realeza, sofre de abandono parental e tem um grande destino à sua frente. Até a sua relutância em assumir o trono é tipicamente heroica (leiam Joseph Campbell).
No entanto, “Aquaman” inverte a fórmula dos mitos heroicos num ponto importante. Arthur não herda os seus super-poderes do pai, Thomas (Temuera Morrison). Eles vêm da mãe, a princesa Atlanna (Nicole Kidman), poderosa amazona marítima. No mais, Thomas Curry é homem comum. E é um bom homem: acolhedor, amoroso, dedicado. Pode-se dizer que há uma inversão dos papéis tradicionais homem/mulher na trama: Thomas assume o lado “feminino” e maternal da relação e Atlanna é o lado “masculino” e combativo.
Talvez, por causa dessa herança matrilinear, a masculinidade de Arthur seja de um tipo menos apolínea e mais dionisíaca. Ou seja: mais selvagem, brincalhona, beberrona, meio antissocial. Até o seu poder (“falar com os peixes”) tem esse traço “natural”. Arthur conversa com tubarões, arraias, os habitantes do Fosso e até a criatura mais temida do filme: o Karathen. (Que tem voz de mulher: Julie Andrews, aquela de “A Noviça Rebelde”. Mais uma prova que o verdadeiro poder, no filme, flui das mulheres). Afinal, ele não é filho do fogo e do ar – ação e abstração – até pouco tempo elementos associados exclusivamente à simbologia masculina. Ele é, sim, filho da terra (Thomas) e da água (Atlanna), dois elementos tradicionalmente femininos.
Esse Arthur Curry recauchutado, inclusive, é bem diferente do Aquaman original. Aquele, sim, tinha um DNA mitológico forte. Era um filho da Grande Mãe: um puer típico, a lá von Franz, homem bobalhão, herói atrapalhado.
O par amoroso de Arthur no filme é a Princesa Mera (Amber Heard). Ela está longe de ser uma princesa da Disney. Como a mãe de Arthur, é uma mulher forte, independente, guerreira, que também foge de um casamento arranjado. E Mera não tem a mínima ideia de como ser uma lady. Numa cena passada na Sicília, em vez de cheirar o buquê de flores… Come-o.
Mais um dado curioso na relação masculino x feminino do filme. Fora Aquaman, as duas figuras masculinas positivas do filme servem a mulheres mais poderosas do que eles. Thomas representa o aconchego do lar pra Atlanna; e Vulko (William Dafoe), mentor de Arthur, trabalha em segredo para Mera, apesar de ser o conselheiro chefe de Orm. Esse último, claro, têm que ser o vilão do filme, já que ele demoniza a mãe por ela ter fugido de Atlântida. Já o Rei Neureus (Dolph Lundgren), pai de Mera, é uma figura ambígua. Apesar de ser aliado de Ohrm na luta pelos Sete Mares, ele dá ouvidos à filha, e consegue ser dissuadido no final que Arthur é a melhor opção para o trono.
Mera e Atlanna representam o poder de ação do feminino, reprimido por séculos a fio. É essa alma inquieta, forte, decidida é o que fez as duas salvarem Arthur, quando fim estava certo para Aquaman. Atlanna, quando Arthur ainda era um bebê; e Mera, quando Arthur vai ser derrotado por Ohrm. De certa forma elas são as verdadeiras heroínas do filme, porque conseguem salvar o próprio personagem principal.
É verdade que certos filmes captam o espírito de uma época. “Aquaman”, do seu jeito, é um reflexo dessa fase de transição política em que estamos, no Brasil e no mundo. Não cabe mim dizer se essa mensagem será datada; só o futuro decide essas coisas… Mas que venham mais filmes com essa mistura de passado e presente, eterno e atual, imaginário e realidade.
José Felipe Sá – Formado em Psicologia na Universidade Salvador (UNIFACS); Pós-graduado em Psicoterapia Analítica no Instituto Junguiano da Bahia (IJBA); Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL); Fundador da Mythological Roundtable de Salvador/BA.