Numa noite estrelada, há mais de 2 mil anos, nasceu uma criança chamada Jesus. Ele tornou-se um dos maiores líderes religiosos de todos os tempos. Hoje, no Natal, celebramos o seu nascimento. Trocamos presentes e cartões, cantamos, decoramos as nossas casas e fazemos presépios em sua homenagem.
No entanto, o capitalismo vem corrompendo o real sentido simbólico dessa data, o natal tornando-se um espetáculo pós-moderno, tendo no centro do palco a celebração do consumo através do ritual da troca de presentes. O natal espiritual e reflexivo vem sendo substituido por uma festividade consumista, que pode gerar ansiedade, endividamentos e estresse familiar.
Perguntamos: Qual é mesmo o símbolo do Natal? o do velho “Papai Noel”, que encerra o ano que passou com um saco de presentes, nos levando ao aquecimento do comércio lojista ou a celebração da criança frágil e delicada, como qualquer outro princípio de vida humana, alimentando as pessoas de amor e fraternidade com o espírito do novo? O desnivelamento de classes econômicas mostra um Papai Noel seletivo, enquanto a criança carente de carinho e calor humano, em lugar de uma visita agradável, recebe muitas vezes muitas mensagens via Whatsapps, que de alguma forma parecem dizer alguma coisa paradoxal, singular e genérica.
Como recuperar a mensagem original do Natal e Ano Novo frente à esse cenário contemporâneo? Precisamos nos conectar com a imagem de Cristo e da criança divina em nós.
Jung via a encarnação de Cristo como simbolizando a realização daquilo que ele chamou de “processo de individuação”, desenvolvimento pessoal e realização mais plena possível da personalidade, inato, processo de nos tornarmos nós mesmos. O autoconhecimento, que nos leva ao engajamento nesse processo, nos ajuda a aceitarmo-nos como somos. Jung viu na figura de Cristo um símbolo daquele que realizou plenamente seu potencial e cumpriu seu destino de tornar-se si-mesmo.
No processo de individuação, precisamos reconhecer a nossa Voz interior, que nos leva a um caminho íngreme e desconhecido. Passamos a ser servidores, sendo conduzidos por uma força maior. Precisamos assumir uma atitude de rendição voluntária à essa força maior, chamada por Jung de “designação”. Para ele, “O que cada personalidade tem de grande e de salvador reside no fato de ela, por livre decisão, sacrificar-se a sua designação (…).”. Seria entregar-se a algo maior do que a consciência que em lendas se atribuem a uma voz interior que se dirige a pessoa.
Essa força estranha contra ou a favor de minhas tendências conscientes pode ser chamada de “Deus”. Render-se à nossa designação corresponde simbolicamente a um batismo iniciático, onde abandonamos papéis sociais e valores que não se coadunam mais com a nossa visão de mundo presente, em prol do que virá (e que muitas vezes podemos ainda não saber, mas intuir).
O momento do Natal e Ano Novo poderia transformar-se em uma oportunidade propícia para refletirmos sobre o seu significado espiritual: o nascimento da criança divina e da consciência Crística em nós. Essa criança divina corresponde a nossa própria primeira natureza, nossa sombra dourada primordial, nossa afinidade com a beleza, nossa essência angelical como mensageiros do divino. Ela carrega o nosso destino e missão, de que temos uma mensagem, trazendo um frescor eterno ao pano- de-fundo arquetípico do universo, como nos diz James Hillman.
A consciência Crística está associada ao ciclo da alteridade, onde a igualdade, a liberdade e a fraternidade surgem através da relação do eu com o outro, da aceitação e do respeito quando se aceita o eu certo e o eu errado, assim como o outro certo e o outro errado. Isso significa que, no ciclo da alteridade, o ser humano é capaz de relacionar as polaridades, o eu e o outro (bem como as coisas entre si), de forma dialética, criativa, igualitária e intercambiável.
É pelo ciclo da alteridade que começa o caminho da individuação do ser humano. Assim, atribuem-se as seguintes características ao ciclo da alteridade: a igualdade, a fraternidade, a tolerância, a compreensão, a convivência, o encontro, a fé, a esperança, a caridade, a amorosidade da troca e a busca do encontro mutuamente frutificado.
Jung nos diz que “Em todo adulto espreita uma criança – uma criança eterna, algo que está sempre vindo a ser, que nunca está completo, e que solicita cuidado, atenção e educação incessantes. Essa é a parte da personalidade humana que quer desenvolver-se e tornar-se completa”.
Honremos a nossa criança divina, ao Cristo em nós, nesse Natal e Ano Novo e em todos os outros natais que estarão por vir. São os votos sinceros de nós, da equipe do IJBA, Instituto Junguiano da Bahia.
Ermelinda Ganem Fernandes – Psicoterapeuta junguiana, docente, supervisora e coordenadora de curso no Instituto Junguiano da Bahia (IJBA) e médica na CAM Clínica de assistência à mulher. Tem experiência na área de medicina,psicologia junguiana e ciências da cognição.