Um político brasileiro com a habilidade de enganar parece conectar-se aos seus admiradores por uma espécie de bluetooth que vincula um lugar escuro em cada um de nós. Lugar onde a estupidez e o poder se encontram, até formar um verdadeiro exército de admiradores capazes de torná-lo “o Grande, o Desbravador, o Honesto, o Bravo, o Magnífico, o Bem-Amado”.
O escritor baiano Dias Gomes, decepcionado com a realidade política e social no Brasil de sua época e, – porque não dizer -, ainda atual, criou uma ficção para nos convidar a fazer uma reflexão e perceber a pesada ausência de uma arte política. Como um poeta imitador do real, mas também seu intérprete, escreveu O Bem-Amado. Uma obra lançada em 1962, escrita no formato teatral, que retrata o modo tribal e primitivo de como vivemos ainda o contexto político e social do país.
Conta-se que no princípio, os homens se destruíam mutuamente até que Zeus, um deus da mitologia Grega, o grande deus dos deuses, atribui-lhes sentimentos de justiça, dignidade pessoal, vergonha e pudor como ingredientes necessários para desenvolverem a arte política. Por isso, na Antiga Grécia, em lugar de temer os deuses, os homens temiam era o desrespeito pela opinião pública. A arte política seria, portanto, o dom que fazia os homens se ocuparem, de forma verdadeira, com os problemas coletivos para o bem comum. Assim evitava que o “eu” ficasse contra o “nós” e este contra o “eles”.
Na história de Dias Gomes, o personagem Odorico Paraguaçu tinha como lema de campanha política a frase: “Vote num homem sério e ganhe um cemitério”. Ele veio a se tornar o prefeito de Sucupira, uma cidade ficcional pequena e situada à beira-mar, no estado da Bahia, que vivia da pesca e dos veranistas. Logo que assumiu a prefeitura, preencheu os cargos com a prática do nepotismo e, dedicando-se aos futuros mortos em detrimento dos vivos, desviou verbas da educação e da saúde para construir o prometido cemitério.
Odorico produzia seus discursos utilizando-se de neologismos que violentavam o processo de construção das palavras. Era um modo de falar muito para sustentar a “máscara” de eloquente, e não dizer nada que mereça as palmas deslumbradas que recebia. Fazia menção às ideias contrárias às suas com o termo “os entretantos”. Palavras como “jenipapista”, “defuntice”, “pacatice, “agoramente” etc. eram neologismos utilizados como a proteger a sua ignorância e sentimento de inferioridade intelectual. Para os seus assessores, Odorico revelava que “os finalmentes justificam os não obstantes”, ou seja, os fins justificam os meios.
Em Sucupira ninguém morria para inaugurar o cemitério. A oposição, representada pelo jornalista Neco Pedreira, dono do jornal A Trombeta, classificava o prefeito de “demagogo esbanjador dos dinheiros públicos”, pois havia feito uma obra inútil. Esse era o trunfo da oposição que levava o Odorico a dedicar-se à destruição da vida, em lugar de sua preservação. O cemitério é uma dessas obras dos políticos, a exemplo da Transamazônica, em que a falta da arte política produziu mais destruição do que criação.
Na luta para conseguir inaugurar o cemitério, contratou um cangaceiro, o Zeca Diabo, como delegado da cidade. Trata-se de um foragido da justiça por ter matado o delegado anterior e produzido outras mortes. Um “fazedor de defuntos”, como pensou Odorico. No entanto, Zeca Diabo queria conseguir perdão dos seus pecados e tomou a decisão de tornar-se um homem de bem diante de Deus e apelou para a ajuda do seu “padim Ciço” para controlar seus impulsos de matar.
Dirceu Borboleta era casado com Dulcinea. Os dois fizeram um voto de castidade a Deus. No entanto, Odorico, com sua sagacidade, fez dela a sua amante e a engravidou. Para resolver seu problema de inaugurar o cemitério e livrar-se da paternidade, arquitetou um plano que não deu certo e o cemitério foi inaugurado com o cadáver do próprio prefeito. Tudo sob o discurso hipócrita e igualmente desonesto do seu opositor, o jornalista Neco Pedreira, que disse: “Adeus, Odorico, o Grande, o Pacificador, o Desbravador, o Honesto, o Bravo, o Leal, o Magnifico, o Bem-Amado…” Essa história alimenta uma crença muito comum em nosso meio: a de que indivíduos com a condição ética e intelectual, os verdadeiros detentores da arte política, não conseguem chegar ao poder. A paixão pelo comando é o reino por excelência da sombra, um lugar escuro em nossa psique onde a estupidez e o poder se unem. É ai que habita o lado oculto da votação, responsável pela inevitável conexão entre a democracia e as nossas personalidades que desconhecem seu caráter destrutivo.
A psicologia de C. G. Jung explicaria a escolha pelo povo, de um Odorico, por meio do fenômeno da projeção da sombra. Sombra seria uma área de nossa psique, um tipo de segmento da personalidade, local onde habitam as mentiras, as coisas relacionadas aos nossos aspectos desajustados e inadequados, que reprimimos para nos adaptarmos à sociedade e, de uma maneira particular, ao estarmos inconscientes dela, projetamos emotivamente em uma escolha.
Quanto mais atuamos de forma primitiva, mais tribais nós somos. Formamos tribalismos com os nossos amigos, grupos, com as pessoas de nossa religião e colocamos muros, por acharmos que somos mais importantes e que os outros são o “eles” que combatemos. Nessa condição o “eu” pratica atos em detrimento do “nós”, mas o “nós” é quem luta contra o “eles”. Deveríamos sim cuidar de nossa humanidade e não querer prejudicar mais ninguém. Uma falta de arte política faz com que possamos sofrer uma injustiça ou praticá-la. Devemos pensar em investir na educação e ter uma imprensa livre, para que a consciência do homem possa se ampliar e lutar para o aperfeiçoamento da democracia.
Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br / www.ijba.com.br