O encontro entre o sábio e o ignorante é transformador, quando há respeito ao outro que quer aprender. A metáfora que descreve o diálogo entre eles é a de uma dança pela fluidez, em que o mestre faz do seu discípulo um outro sábio. Esse foi o resultado da história entre um tosco carteiro e o poeta Pablo Neruda.
O escritor chileno Antonio Skármeta prestou uma bela homenagem ao Nobel de literatura, o poeta Pablo Neruda, ao escrever a obra “O carteiro e o poeta”. Ele conta a história de Mário Jiménez, um jovem carteiro de 17 anos, que ganha um emprego como carteiro de um único cliente, morador da Ilha Negra. Não há mais ninguém naquele lugar, além do Neruda, que tenha o hábito de ler e receber cartas.
É uma narração úmida e sensual, que desperta, no leitor, as suas peculiares figuras da imaginação. A história se passa no momento político em que os militares implantaram a ditadura no Chile e foram deixando pelo caminho as vítimas da asfixia social, sem o direito de se defender diante do absurdo de atos desumanos, nos quais morreram o presidente Salvador Allende, Neruda e a democracia. A poesia de Neruda e o sangue de milhares de chilenos invocaram o clamor por justiça.
Mário, um jovem ingênuo, é transformado à medida que se encanta com as palavras do poeta e este lhe esclarece o que é uma metáfora. Neruda mostra-lhe como as palavras podem ser colocadas em harmonia, umas com as outras, para se traduzirem em metáforas poéticas, de tal forma que aquele que escuta ou lê experimenta, no corpo, o que elas traduzem. É uma comprovação empírica de que o corpo e o pensamento são uma só coisa. O carteiro então pergunta ao poeta se o mundo inteiro é a metáfora de alguma coisa. Esse questionamento deixa o genial Pablo Neruda sem respostas.
O carteiro se apaixona e culpa Neruda por isso. O poeta então lhe diz que, ao presenteá-lo com suas poesias, não o autorizou a plagiá-lo em sua comunicação com Beatriz, a namorada de Mário, ao que este responde: “a poesia não é de quem escreve, mas de quem usa!”
O convívio com o poeta e a leitura que Mario faz dos seus livros o tornam sábio. Casa-se com Beatriz e, ao ler uma carta de Neruda, sua sogra reclama de sua lentidão. A explicação dele foi: “É que a senhora não lê as palavras, e sim as engole. Tem que saborear as palavras. A gente tem que deixar que elas desmanchem na boca”.
É comum se pensar que as metáforas são utilizadas apenas pelos poetas, no entanto, uma escuta mais atenta perceberá que elas são utilizadas em nossa linguagem cotidiana. Os poetas apenas alinham e combinam as palavras numa sintaxe para elaborar suas metáforas da forma descrita pelo poeta espanhol Garcia Lorca: “poesia é a união de duas palavras que nunca se supôs que ficassem juntas, e que formam algo assim como um mistério”.
O cientista da cognição George Lakoff e o filósofo Mark Johnson, no livro “Metaphors we Live by”, trouxeram o conceito de Metáforas Conceituais para explicar nossa linguagem do cotidiano, como também a linguagem dos nossos sonhos. Metáforas Conceituais são a nossa forma de dizer as coisas, por meio de uma imagem habitualmente utilizada em determinadas culturas. Ideias, por exemplo, podem ser referidas como plantas: as sementes de suas ideias foram plantadas na juventude. A vida pode ser comparada a um vasilhame: ela teve uma vida vazia. O amor, tido como uma guerra (ela lutou para ficar com ele) ou como paciente (a relação está doente).
Em nossa prática da psicoterapia, ficamos atentos para escutar as metáforas contidas nas frases ditas pelo paciente e perceber as mensagens ulteriores que revelam suas intenções ocultas. Uma boa forma de adquirirmos essa experiência é por meio da leitura de boas obras literárias. Essas leituras nos habituam a saber ouvir os conteúdos inconscientes que permeiam as frases ditas pelo paciente, tidas como literais.
A linguagem dos poetas é a linguagem do inconsciente. O “pensamento-fantasia”, a que Jung se refere, faz ligação com as camadas mais antigas do espírito humano, ou como disse Nietzsche: “no sonho, tornamos a atravessar o pensamento da humanidade antiga”. É uma forma de dizer que é um pensamento tão profundo quanto a poesia.
O analista, mesmo entendendo a psicodinâmica do seu paciente, precisa passar o que foi compreendido, utilizando-se de uma linguagem que mobilize o insight. Para isso, ele deverá apropriar-se de uma linguagem metafórica e analógica. Frases ditas de forma literal e explicativa, ou com pobreza metafórica, limitam os espaços para o analisando preencher o que foi dito com o seu conteúdo pessoal.
O carteiro assistiu seu amigo poeta morrer. Pablo Neruda morreu triste, por ser vítima de um regime autoritário, que abateu a sua humanidade e adormeceu sua poesia. Criar é ter a liberdade para deixar emergir a sabedoria das profundezas do ser. A vida pode seguir um caminho fluido ou concreto. Para ser fluido, precisamos nos relacionar com a poesia da alma, que traduz o quanto somos desimportantes diante dos mistérios que a consciência humana não alcança.
Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br / www.ijba.com.br