O envelhecer de Branca

Por Carlos São Paulo

Dona Branca tinha envelhecido, o espelho revelou. Comprava muitos produtos para que pudesse retardar as mudanças que marcavam a sua face. Vendo que o tempo passava e ela não conseguia conter as transformações, foi aos poucos tomando para si uma superioridade moral ⎼ em lugar de ter opiniões firmes e convictas ⎼ para a forma como ela se relacionava com as mulheres mais novas.

Diante do espelho, ela era, para si mesma, alguém diferente daquela Branca de vinte e cinco anos. No passado, seus admiradores diziam que ela era tão branca, branca como a neve. Diante dessa figura fixada em sua imaginação, ela sentia uma desigualdade irremovível. A desigualdade de mãos dadas à estranheza fez com que tivesse vontade de comer uma maçã envenenada, mas Branca logo desistiu. Se fizesse, sabia que iria dormir para sempre.

Suas ideias ficaram radicais, enquanto ela vivia no passado. Casou-se sete vezes ao longo da vida e, para cada ex-marido, Branca descrevia, com algum sabor, os inúmeros defeitos de cada um deles. Nessa vida não encontrou nenhum homem sem imperfeição, mas acreditava que a vida se comportava como se fosse continuar depois da morte. Assim encontrou um mito para ajudá-la a conviver com a finitude e uma possibilidade de encontrar um homem ideal nessa outra existência.

Branca não sabia que suas dúvidas e incertezas existiam de forma inconsciente. Essa condição fez com que ela compensasse instituindo para si uma verdade acima de qualquer crítica e sem levar em consideração qualquer decisão moral. Seu comportamento era o de atacar, em si mesma, a mocinha de vinte e cinco anos congelada em sua imaginação. Desespero e intolerância se uniram e, como consequência, ela fazia um ofensiva fanática a quem envelheceu.

O medo, a ameaça e a angústia acompanhavam Branca. Ela passou a perceber o mundo sentindo a ameaça de mulheres jovens. Habituou-se a culpabilizar os outros e chegou às raias da loucura e do fanatismo. Quando ouvia falar da juventude, o ódio que nutria mudava o semblante, tremia as mãos e protestava. Não queria mudar de atitude e temia qualquer coisa que pudesse abalar as suas crenças. Destruiu seu espírito crítico sobre si mesma, daí a ineficácia da razão. Instalou-se a morte psíquica antes mesmo da morte biológica.

No seu jardim, não nasciam mais flores. Sua relação com a natureza funcionava como um potente agrotóxico que matava qualquer planta que fosse bela. Deixava apenas as plantas daninhas. Ela agia consigo como os fanáticos agem com os outros que lhes causem estranheza. Não tinha mais respeito para com as pessoas em volta.

Não sabia mais contemplar as estrelas para fazer contato com o mistério da existência e apreciar o belo. Nem mais uma prece conseguia fazer.

Em mais um de seus dias amargos, encontrou uma menininha pobre, que lhe pedia ajuda estirando a pequena mão em forma de concha. Branca olhou para ela e, com uma bondade até então nunca descoberta, chamou-a para jantar. Sentadas à mesa, a menina passou a contar algumas histórias que fez aquela mulher tão amarga se tornar doce. As duas, de mãos dadas, foram até o quintal olhar para as estrelas. A idosa agradecia aquela presença, quando notou que estava só. Descobriu que ela tinha encontrado e conversado com a menina de dez anos que ainda existia nela e até se lembrou que possuía uma foto com aquela mesma imagem.

Quando a psique é dominada por um conflito e consegue uma imagem como essa, dizemos que ela se revelou por meio de um símbolo. Branca teve uma experiência como uma epifania. Quando isso acontece, devemos respeitar o sagrado da revelação. O arquétipo da maternidade foi acionado e assim, com o símbolo da criança, ela estabeleceu o relacionamento entre o consciente e o inconsciente, tão necessário para a sua evolução.

O arquétipo materno, constelado na psique de Branca, fez surgir um impulso para que ela lembrasse da falecida mãe e cuidasse de si mesma e do outro. Sob essa ótica do cuidado, ela conseguia olhar para o firmamento e tudo lhe parecia um jardim de saudades, no qual cada flor era uma estrela e, em cada estrela, um ente querido que já partiu. Foi assim que ela entendeu a sua pequenez diante do mistério guardado pelos astros.

______________________________________________________________________________________________________________________________

Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br