Médica, analista junguiana, doutora em Engenharia e Gestão do Conhecimento (UFSC), coordenadora do curso de especialização em Processo Criativo e Facilitação de Grupos (abordagem junguiana) do IJBA.
“Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar, para atravessar o rio da vida. Ninguém, exceto tu, só tu. Existem, por certo, atalhos sem números, e pontes, e semideuses que se oferecerão para levar-te além do rio; mas isso te custaria a tua própria pessoa; tu te hipotecarias e te perderias. Existe no mundo um único caminho por onde só tu podes passar. Onde leva? Não perguntes, segue-o!” NIETZSCHE.
INTRODUÇÃO
Na sua autobiografia “Memórias, sonhos e reflexões”, Jung (1975) nos diz, “… Assim, pois, comecei agora, aos oitenta e três anos, a contar o mito da minha vida. No entanto, posso fazer apenas constatações imediatas, contar histórias…”.
Ao contarmos as nossas histórias, traduzimos em imagens as nossas emoções. Todas as histórias consistem em alguns elementos estruturais comuns, encontrados universalmente em mitos, contos de fadas, sonhos e filmes. São justamente esses elementos que, em conjunto, são definidos como “A jornada do herói”.
Campbell (2007) encontra alguns elementos comuns em toda história de herói. Ele está em seu mundo comum, tranquilo, cuja paz, porém, está ameaçada. Ele recebe um chamado à aventura. Se recusa o chamado, ativa o anti-herói e nada acontece, continua no mundo comum. Se ele aceita o chamado, aparece um mentor que o ajuda. Ele faz uma travessia e entra no desconhecido (é o que chamamos de entrada na floresta). Na floresta acontece a prova suprema – a luta com o dragão, seu maior inimigo, aquele que ameaçava a paz em sua terra natal. Como recompensa o herói recebe o prêmio, um tesouro, a pedra filosofal. Após receber o tesouro ele tem de levar o prêmio para a cidade. É o retorno, a volta ao mundo conhecido com o prêmio, trazendo prosperidade e segurança para o mundo.
Quando falamos da jornada do herói, portanto, do ponto de vista arquetípico, estamos falando de todos nós, humanos, em nossos processos de individuação.
Individuação significa tornar-se um ‘indivíduo’, aquele que não se divide. A individuação é a realização do vir-a-ser do homem, cujo objetivo final é a integração de consciência e inconsciente. Nesse caminho, a posição do ego fica relativizada pela sua conciliação com o inconsciente. O ego é, então, assimilado ao Si-Mesmo. Essa integração total do Si-Mesmo, embora seja um ideal de perfeição impossível de ser alcançado, pode ser buscada como meta.
Como podemos nos esquecer daqueles antigos mitos que estão nas origens de todos os povos, os mitos que falam de dragões que na última hora se transformam em princesas; talvez todos os dragões de nossas vidas sejam princesas que apenas estão esperando um dia nos ver belos e bravos. Talvez tudo de terrível em seu ser mais profundo seja algo de desamparado que quer nossa ajuda
Os filmes do cinema nos contam histórias de heróis de todos os tempos. “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” narra a história de uma jovem heroína: Amélie, menina que desenvolve uma sensibilidade enorme pelo fato de viver sempre isolada das pessoas. Esse distanciamento estabeleceu uma relação diferente com as coisas e os seres, desenvolvendo um jeito especial de enxergar e lidar com o mundo.
A INFÂNCIA DE AMÉLIE
O filme começa a nos contar a história dessa menina, curiosa, inventiva, filha de uma mãe neurótica e de um pai iceberg, pessoas que não gostam do contato físico e que gostam de limpeza e organização, num padrão obsessivo de comportamento, onde a ordem e o perfeccionismo são priorizados.
O pai de Amélie (que era médico) acreditava que ela tinha uma anomalia no coração (por este bater rápido quando a menina o via) e por isso, ele e a mãe não a deixaram frequentar a escola. Sem amigos da sua idade, ela se refugia da solidão criando amigos imaginários. No lugar de um abraço o pai se comunicava com a menina através de um estetoscópio.
A alma familiar é um espaço psíquico que permite o aprofundamento e o desenvolvimento das almas individuais dos membros da família. Quando a alma familiar esta presente, os membros se sentem compreendidos e conectados uns com os outros. Quando a alma familiar encolhe, as pessoas temem expressar-se, porque seus sentimentos seriam inaceitáveis para aqueles de cuja aceitação dependem.
Amelie tinha uma alma familiar encolhida. O seu único amigo era um peixe suicida chamado Cachalot.
A imagem do peixe fora d‘água vai acompanhar Amelie e pode ser utilizada para nos falar do sentimento que a personagem tem em relação à sua vida.
Para filhas feridas que têm uma relação deficiente com o pai, a redenção implica em remodelar o masculino interior e encontrar o “homem com coração”, o homem interior que tem uma relação positiva com o feminino.
UM PEIXE FORA D’ÁGUA – O MUNDO COMUM DE AMÉLIE
Amélie está no início de sua vida adulta – 23 anos. A sua mãe morre, o seu pai torna-se cada vez mais solitário e ela sai de casa. Vem levando uma vida solitária, introvertida e imaginativa. Trabalha como garçonete num café, pouco se relaciona e está cercada de pessoas também muito solitárias. Sente-se como um peixe fora d‘água, uma estranha no mundo. O narrador revela os sentimentos de Ame?lie: “nada mudou, Ame?lie continua a se refugiar da solidão de sua vida, pensando em questões idiotas sobre o mundo ou sobre a cidade que ela observa”.
O peixe, elemento da água, pode simbolizar a intimidade de Amelie com o mundo das emoções. A água, dramática, agradável, constante, flexível (amolda-se facilmente – escolhe o caminho de menor resistência e “segue o fluxo”) representa o mundo dos sentimentos.
Amelie tem uma personalidade idealista e sonhadora, com forte predominância do arquétipo do inocente, com um comportamento humano caracterizado por ingenuidade, otimismo, esperança, fé e simplicidade marcantes.
O CHAMADO DE AMELIE – A CAIXA DE BRINQUEDOS
Na noite de 30 para 31 de agosto de 1997, ao assustar-se com a notícia da morte de Lady Di, Amelie deixa cair uma peça da mão, que rola no chão e bate exatamente em um lugar do rodapé que estava solto, para então revelar que havia uma caixa com brinquedos antigos escondida em um buraco na parede. Amélie resolve ir atrás da pessoa que morava lá na década de 50, naquela época uma criança, para entregar-lhe a caixa. Com seus vizinhos, faz o mesmo. De intensa observadora que sempre foi, passa a agir, fazer justiça e tentar mudar o destino das pessoas. Para melhor.
A caixa de brinquedos abre uma porta para que Amelie entre também em contato com a sua história, com seus aspectos infantis guardados. Como a caixa de Pandora da mitologia grega, contém uma esperança de cura.
O entusiasmo (do grego enthousiasmos, ou “inspirado pelos deuses”, tornando a vida sagrada ou imbuída de alma) aciona o movimento heroico na jovem que transforma-se na “salvadora da pátria”, até que o seu destino também é mudado quando encontra um álbum de fotos instantâneas no chão.
Comermos a maçã da árvore do conhecimento significa crescer, evoluir e sair do paraíso. A tentação da serpente representa a necessidade de autorrealização do homem e simboliza o princípio da individuação (EDINGER, 1992). Só assim poderemos chegar à terra sem mal e comer o fruto da arvore da vida.
“Como heróis, jamais podemos abrir mão dos nossos sonhos e ideais… Ao mesmo tempo, porém, precisamos estar dispostos a sacrificar alegremente nossas ilusões todos os dias para podermos crescer e aprender” (PEARSON, 1995).
ENCONTRO COM O MENTOR – DUFAYEL
O arquétipo do mentor, de acordo com Vogler (2006), é um guia que estimula a entrada do herói na aventura dando conselhos e ensinando valiosas lições. Fornece ao herói motivação, inspiração, orientação, treinamento e presentes para a jornada. Campbell (2007) costuma classificar o arquétipo do mentor como o “velho sábio”.
É Dufayel, um artista solitário, “o homem de vidro”, o mentor da nossa heroína, o curador ferido, que de forma terapêutica vai trazer para Amelie um movimento de transformação que a princípio ela só projeta para fora, para o outro. Utilizando a arte como recurso, ao tentar finalizar o quadro “ o almoço dos barqueiros”, o mentor analisa o olhar da garota com o copo d’água no centro do quadro de Renoir.
Dialogando com Amelie como um terapeuta, o artista mentor provoca reflexões capazes de mexer com as emoções da heroína, conforme podemos observar neste trecho do diálogo entre os dois:
-Está ao centro, mas está ausente. “talvez seja apenas diferente” diz Amelie, projetando suas emoções na pintura. “Ela nunca se relacionou, quando criança não brincava com outras crianças” contrapõe Dufayel, deduzindo as dificuldades de Amelie
-Ela parece distante… talvez seja porque está pensando em alguém.
-Em alguém do quadro?
-Não, um garoto com quem cruzou em algum lugar, e sentiu que eram parecidos.
-Em outros termos, prefere imaginar uma relação com alguém ausente que criar laços com os que estão presentes.
-Ao contrário, talvez tente arrumar a bagunça da vida dos outros.
-E ela? E a bagunça na vida dela? Quem vai pôr ordem?
-Então, minha querida Amélie, não tem ossos de vidro. Pode suportar os baques da vida. Se deixar passar essa chance, com o tempo seu coração ficará tão seco e quebradiço quanto meu esqueleto. Então, vá em frente, pelo amor de Deus
– Acho que está na hora dela assumir o risco.
– Sim. Ela está pensando em um estratagema para…
– Ela gosta mesmo de estratagemas. É, nós aqui sabemos o quanto ela é ardilosa!
– Sim.
– Na verdade é um pouco covarde. Por isso não consigo captar seu olhar.“
A ENTRADA NA FLORESTA
Logo após a descoberta da caixa de brinquedos, Amelie encontra Nino pela primeira vez, ao seguir o som de uma música no toca discos do cego do metro (uma das pessoas ajudadas pela jovem). Apaixona-se por ele.
Incomodada com a sua insegurança denunciada por Dufayel, imagina-se mártir, morrendo jovem, sacrificando-se e deixando uma multidão de órfãos, descreve-se “privada de si mesma e ainda assim sensível ao encanto das coisas simples da vida”.
O TRICKSTER
Mas tem ainda uma missão: fazer algo por seu pai. Ao roubar o anão do jardim do pai e deixá-lo confuso com fotos de viagens do anão, entra em cena um tipo de comportamento malicioso e brincalhão típico de outra figura arquetípica: o trickster. Quando surge essa figura mítica, ocorrências sem-sentido ganham significado, por meio de malícia, da trapaça, do humor, da brincadeira e do “nonsense”.
O arquétipo do trickster é o do astuto fora-da-lei, um arquétipo do contraventor, oposto ao guardião da ordem, das formas e da burocracia.. É um arquétipo da inversão, cuja função simbólica é a de compensar a unilateralidade espiritual do arquétipo do herói. É um agente da desordem que visa gerar uma nova ordem. Embusteiro, trapaceiro, Grande Rebelde.
Amelie age cada vez mais: promove encontros, restaura corações feridos e começa a rebelar-se, provocando o desinteressado e apático pai. Mas toda sua raiva encontra um alvo em Collignon. Amelie, com sua ferida e sua “invalidez psicológica” identifica-se com Lucien, inválido, sensível e destratado pelo patrão.
O ZORRO
O Zorro é outro arquétipo do herói constelado por Amelie no seu processo de desenvolvimento – defensor dos pobres e oprimidos, que luta por uma nova ordem, socialmente mais justa. O tema do herói surge em momentos de desafios, de enfrentamento de adversidades e de crescimento, em tempos de revolução, de transformação da ordem estabelecida. Amelie encarna o Zorro, misto de herói e animus, e vai ganhando força e coragem para romper o isolamento em que se encontrava, a “velha ordem familiar”, e ir de encontro à Nino, sua primeira paixão.
Cada um de nós é um herói; Isso é um dote; Temos um chamamento para a aventura; Recusamos; Segue-se uma crise; Não podemos voltar atrás – e atendemos ao chamado; Juntamos auxiliares, professores, guias; E cruzamos o limiar do desconhecido; Perdemos a nossa identidade e afundamos num abismo, no nadir na barriga da baleia; E emergimos; Começamos a viajar de volta para casa, para aquilo que conhecemos – cruzando de volta a fronteira; Nós voltamos; Transformados.
ENCONTRANDO O TESOURO (NINO) – O AMOR
Logo de cara Amelie enfrenta duas dificuldades: Nino trabalha no Palace Vídeo – Rei do Pornô, e no parque de diversões num trem fantasma. Uma alusão aos riscos da paixão, o perigoso mundo do desejo e do sexo, e o assustador mundo da morte , o tema da morte na casa do amor, o risco da dor de amar e perder. Amelie encara o trem fantasma e é assediada por Nino com a máscara de caveira, numa bela cena.
Com seu aspecto heroico enfrentando desafios e ganhando coragem, sua mente fértil e imaginativa cria estratagemas para atrair Nino. Entra no mundo simbólico e criativo de Nino, com seu álbum perdido de fotos anônimas rasgadas, brinca com sua curiosidade sobre o homem enigmático das fotos, utiliza-se das fotos do álbum para comunicar-se, complementando o álbum com suas fotos, ainda mascaradas – “quer me conhecer? Eu sou você”. A sequência do encontro no parque para a entrega do álbum descreve com incrível bom humor as dificuldades que uma pessoa muito introvertida tem para se relacionar, ao mesmo tempo que revela a criatividade e o uso da imaginação a serviço da transformação e do encontro.
O romance de Amelie e Nino é uma bela retomada do mito do amor romântico, idealizado, aquele/aquela que está “desde sempre em nossos sonhos”, aquele que vem banhado nas águas de um narcisismo saudável e necessário, principalmente se pensarmos que Amelie quase não teve espelho simbólico – um relacionamento afetivo significativo que lhe propiciasse o desenvolvimento da auto-imagem e da auto-estima, e que precisa ser vivido, pelo menos uma vez, pelo menos a primeira vez, mesmo que depois seja desconstruído e reconstruído, quantas vezes se fizer necessário.
CONCLUSÃO
Quando nos identificamos à jornada de aprendizado e crescimento de um herói determinado, temos a chance de analisar seus conflitos e embates de uma perspectiva diferente daquela vivida pelo próprio. Muitas vezes, assimilamos os conflitos fictícios por ele superados aos nossos próprios conflitos pessoais e, com isso, encontramos inúmeras alternativas e soluções que antes não eram minimamente imaginadas.
Uma boa história faz a gente achar que viveu uma experiência completa e satisfatória. Pode-se rir ou chorar com uma história. Ou as duas coisas. Terminamos uma história com a sensação de que aprendemos alguma coisa sobre a vida ou sobre nós mesmos (VOGLER, 2011).
Você recebeu a vida; é seu dever (e também seu direito como ser humano) encontrar alguma coisa de belo nessa vida, por mais ínfimo que seja. Qual é o fabuloso destino da tua jornada?