Um cientista joga contra o progresso ao descobrir como se tornar invisível e não publicar suas descobertas científicas. Esse é o tema de uma ficção científica, escrita em 1897 por H. G. Wells, com o título de O Homem Invisível. Essa obra, de leitura tão agradável, mostra a realidade da natureza humana quando se vê dominada pelo desejo de reconhecimento e poder.
Jack Griffin, com estudos profundos sobre a refração da luz, descobre como tornar a sua pele invisível. Fixado nos seus próprios interesses, esquece-se de que faz parte de um sistema maior em que tudo está conectado e de que sua segurança é também a do outro. No final da história, encontra-se com o seu antigo professor Kemp e, na condição de homem invisível, confessa a sua descoberta, deixando-o perceber o quanto ele se sente à semelhança de um deus, desde que não exista um outro homem também invisível.
A história começa com a chegada de Griffin a uma pequena cidade denominada Iping. Como ele está invisível, utiliza-se de recursos para mostrar partes visíveis e dar a impressão de alguém com o rosto coberto de ataduras. Torna-se, para aquela comunidade, um estranho de pouca conversa que sofre de alguma doença.
O sociólogo Bawman afirma que: “todas as sociedades produzem estranhos”. Um grupo humano, seja uma sociedade, seja uma família, tem seus ideais de beleza e perfeição sem qualquer respeito pela natureza. Isso afeta o bem-estar dos seus membros e daqueles que tal sociedade ou família elegeram como estranhos.
Em nosso mundo pós-moderno, uma reflexão sobre o potencial humano invisível que pode aparecer na forma de um doente nos levará a pensar nas pessoas classificadas pela nosologia psiquiátrica, nos apátridas ou naqueles barrados por um muro para não partilharem de supostos benefícios de nações ditas poderosas por sua capacidade bélica. São essas comunidades fechadas para si mesmas que, como o Homem Invisível, produzem incertezas no lugar da clareza, construindo, dessa forma, o conceito de “estranhos”.
Na mitologia grega, o deus Hefesto traduzia a ideia do “estranho”. Ele foi rejeitado pela genitora e, por sua feiura, foi lançado ao mar. Salvo, tornou-se capaz de fazer o exercício da arte bela e perfeita. Casou-se com Afrodite, a deusa da beleza. É nessas tramas míticas que encontramos os caminhos em que os valores eternos da humanidade se escondem. Precisamos descobrir esses caminhos em meio a manifestações paradoxais ou enigmáticas para a razão.
Com o mito de Hefesto, aprendemos o quanto aquele que se torna o “estranho” compensa essa condição ao trazer em suas produções toda a beleza de que precisa para encantar o outro. No entanto, a beleza no fazer do homem precisa se relacionar com a beleza em si. Quando isso não acontece, o “estranho” poderá aparecer com anseios de individualismo e poder ao perder sua imagem. Nessa condição, ele poderá tentar conquistar a imagem perdida com a esquisitice de seus atos e a pretensão de usar o terror.
Na história, quando o Homem Invisível fica a chicanear transeuntes, sente a satisfação de agir em prejuízo do outro sem ser notado. Hoje, muitos creem que a invisibilidade construída por meio de identidades falsas, nas redes sociais, dá o poder para a prática de crimes e, assim, permite atender aos interesses espúrios deles.
Vivemos em um mundo que desprezou muitos desses valores eternos revelados nos mitos e mergulhou num verdadeiro caos repleto de sofrimento dentro da invisibilidade de si mesmo. Essa natureza do mundo das trevas que nos habita precisa da consciência para passar a existir. Do contrário, esse homem coloca o seu pequeno eu no lugar do todo da personalidade e perde sua verdadeira identidade por não conseguir tornar-se visível a si mesmo.
A relação entre nossa personalidade inconsciente, ou invisível, e aquela que é visível por nós mesmos nos deixa com dois caminhos: ou mergulhamos em nosso mundo obscuro e nos libertamos das “traquinagens” do homem invisível pelo diálogo com as nossas imagens interiores até percebermo-las como parte de nós mesmos, ou apenas nos aproximamos interessados por simples curiosidade e permanecemos na superfície em busca de poderes mágicos. Tais poderes podem ser exercidos por charlatões que estão a serviço de nossa alienação e tentam nos poupar do sofrimento ao evitar que percebamos que tudo isso nos pertence.
Acreditar na invisibilidade, nas artimanhas do inconsciente, atuando por meio de uma personalidade que a consciência não consegue perceber e que imputa aos outros a responsabilidade pelo mal estar vivido é um ganho importante na evolução da consciência. Muitos eventos do presente que, por analogia, engancham-se às emoções desencadeadas por experiências do passado serão desmistificados como um reconhecimento dos diabretes invisíveis que nos habitam.
O homem pode, em seus sonhos, transformar-se no homem invisível e entender sua inadaptação à vida. Com isso, experimentará o sofrimento de quando se perde a identidade. Nesse processo interior de enfrentamento da sua realidade escondida no “homem invisível”, toda superficialidade e egoísmo ficam esmagados. Do contrário, apenas quando esgotar o limite do sofrimento é que o círculo da vida ficará fechado, e o Homem Invisível de Wells poderá ser visto quando não mais existir vida.