Na prática da Psicoterapia Analítica, a interpretação dos sonhos é uma tarefa de grande valor clínico. Este desafio se apresenta na vida do terapeuta ainda enquanto paciente da sua própria terapia, quando deve confrontar seus sonhos. Uma grande dificuldade surge: como traduzir a linguagem onírica, aparentemente sem nexo, para a linguagem consciente na qual fomos treinados desde crianças? Como fazer de algo parte empírico, parte “mágico”, um ofício?
Na civilização moderna ocidental, foi apenas a partir de A Interpretação dos Sonhos (FREUD, 1999) que estes deixaram de ser considerados como uma atividade pouco significativa da vida humana para ganhar sentido e valor prático. Em 1912, o psiquiatra Suíço Carl Gustav Jung, até então um importante colaborador de Freud, publica a obra Símbolos da Transformação, onde lança as bases da sua própria teoria psicológica. Nesta obra, Jung propõe uma distinção entre dois tipos de pensamento: o pensamento dirigido e o sonho ou fantasia. Ao dar um passo adiante de Freud e atribuir ao conteúdo onírico – e também às demais atividades fantasiosas do espírito humano – o status de pensamento, Jung tomou como tarefa da sua vida inteira o entendimento dessa segunda forma de linguagem. Para isto, ele valeu-se da mitologia e etnografia comparadas, religião, alquimia, artes e praticamente toda manifestação humana que mostrou ter indubitável valor psicológico coletivo, independentemente do seu valor histórico-científico.
Segundo Jung (2011), o pensamento dirigido é uma atividade voluntária, consciente e racional que tem a função de interpretar a realidade, descrevendo o mundo e compartilhando este conhecimento, motivo pelo qual uma parte importante das palavras que usamos surgiram de onomatopéias, simples imitações de ruídos naturais. Precedido por Nietzsche (2005), Freud (1999) já havia esboçado uma distinção entre o pensamento onírico e o racional, tendo denominado o primeiro de “processo primário” (ou associativo) de pensamento, típico das crianças, da humanidade primitiva e dos sonhos; e o segundo, “processo secundário”, típico do homem adulto, culto e racional. Porém, para Jung (2013), “irracional” designa tão somente algo que não pode ser compreendido pela razão consciente em determinado momento, e não como algo de caráter arbitrariamente associativo, cujo sentido seja infantil ou primitivo. Assim, a narrativa onírica só aparenta à consciência irracionalidade por carregar uma forma peculiar de linguagem, mas, se levada em consideração, fornece material para as mais elaboradas e valiosas atividades criativas do ser humano.
Nas narrativas do Antigo Testamento há vários exemplos de interpretação dos sonhos, atividade exclusiva dos sacerdotes e profetas por ser considerada um dom divino. Para Jung (2013) este dom corresponde uma função psíquica que ele denominou de Intuição. Sob tal ponto de vista os profetas eram pessoas que, por terem esta função bem desenvolvida, possuíam uma aptidão especial para interpretar estas narrativas de grande valor coletivo. José, filho de Jacó (ou Israel), interpretou sonhos premonitórios do Faraó e, através disso, conseguiu grande poder e riqueza em seu exílio no Egito. Daniel, profeta hebreu cativo do Império Babilônico, interpretou os sonhos de Nabucodonosor e previu para este uma psicose que compensaria sua ambição desmesurada por poder, o que se concretizou após o rei ter ignorado a sua advertência.
Mas uma grande ilustração de pensamento intuitivo que poderia facilmente ter ocorrido num sonho foi uma alegoria produzida pelo profeta Natã, numa conversa com o rei Davi. Davi, ao ver Bate-Seba banhando-se, cobiçou e ordenou-lhe que se deitasse com ele enquanto seu marido, o general Urias, estava em guerra. Ao descobrir posteriormente sua gravidez, trouxe seu marido para Jerusalém sob um falso pretexto, para que este dormisse com sua esposa e pudesse assumir a paternidade da criança e assim ocultar o adultério do qual fizera parte. Urias, após reunir-se com Davi, recusou-se a voltar para casa e dormiu na escadaria do castelo, pois não incorreria em uma noite de satisfação enquanto seus soldados morriam na guerra. A solução encontrada por Davi foi reenviá-lo ao campo de batalha com ordens para que assumisse a linha de frente, onde rapidamente morreu. Bate-Seba, agora viúva, poderia ser novamente desposada.
Porém, o profeta Natã procurou o rei Davi com as seguintes palavras: “ó Rei, o que faria o senhor ao homem que, dono de um grande rebanho, roubasse de um pobre a única ovelha que tinha, para oferecer um banquete a um viajante que passava em suas terras?” Davi, revoltado com tal injustiça, disse que “homem que fez isso merece morrer!”, ao que Natã respondeu: “tu és tal homem!”
Frequentemente, a incapacidade do sujeito de encarar a si mesmo de uma perspectiva diferente da habitual o torna cego para suas deficiências. O inconsciente assume então o papel de Natã, que, sendo apenas um sacerdote diante do mais poderoso rei da história de Israel, precisou lançar mão de um artifício que fizesse Davi sentir a gravidade do seu próprio pecado. A alegoria é um expediente comum nos sonhos, pois estes frequentemente utilizam conteúdos que nos são familiares para ilustrar relações que se aplicam a outras situações da vida. Natã apelou mais ao senso de justiça do pastor pobre que o próprio Davi fora na infância que ao ego inflado de um rei que havia vencido todas as suas batalhas e acreditava não haver limites para as suas pretensões. Apresentando ao sonhador um ponto de vista diferente do experimentado em sua vida desperta, o inconsciente comporta-se como o profeta Natã, que não poderia acusar diretamente um rei de adultério e assassinato sem correr um alto risco de retaliação. Se para Freud o sonho é o mero produto de uma vivência reprimida, distorcida durante sono para “enganar” o ego, para Jung o caráter metafórico da fantasia é uma forma estratégica de chamar a atenção do indivíduo para conteúdos de difícil conscientização. Isto sugere que, sob o aparente caos da narrativa onírica, há um propósito inteligente.
No entanto, este mesmo caráter dificulta sobremaneira a compreensão dos sonhos, motivo pelo qual é quase sempre necessária a intervenção de um “intérprete” neste processo. Para alguém “de fora” a mensagem onírica pode parecer muito mais clara que para o próprio sonhador. O terapeuta deve ajudar o sonhador a alcançar esta visão insuspeita de si mesmo, o que lhe permitirá solucionar importantes questões pessoais. A cada sonho abordado, uma visão mais ampla aos poucos se constrói e a função Intuição é exercitada, de modo que tal tarefa só pode ser aprendida com a prática constante e persistência diante das resistências do ego à conscientização de conteúdos que ameacem a validade absoluta de suas crenças. Estas são como pontos cardeais que usamos para navegarmos na vida; a atualização da personalidade não vem sem a ameaça assustadora de desorientação que se tem ao perder as referências habituais. A compreensão intuitiva tem um papel vital no entendimento onírico, e seu funcionamento assemelha-se bastante a uma revelação súbita, mas que atua com uma frequência que cresce à medida que nos dedicamos à nossa análise pessoal, ao estudo dos sonhos como dos mitos e fantasias. Uma intuição “despertada” durante o longo trabalho analítico pessoal é um importante predicado do terapeuta junguiano, que atua não só no consultório como lhe confere um novo olhar diante das narrativas do mundo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BÍBLIA ONLINE. https://www.bibliaonline.com.br. Acesso em 15 de julho de 2018.
FREUD, Sigmund; A interpretação dos sonhos. 8 ed. Rio de Janeiro: Imago, 1999.
JUNG, C. G. Símbolos da transformação: análise dos prelúdios de uma esquizofrenia. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
JUNG, C. G. Tipos psicológicos. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2013.NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
Paulo Nunes: Médico graduado pela UFBA em 2005. Especialista em Psicoterapia Analítica pelo IJBA em 2018.