Desde os primórdios, o mito cumpre a tarefa de dar sentido ao mundo e à existência humana, tanto individual quanto coletiva. Assim, todos os povos têm seus próprios mitos a respeito de temáticas diversas e universais. É certo que nenhum deles vivenciou o que relatam nessas histórias, pois o sentido fundamental dum mito não é externo, mas interno: os mitos não apresentam realidades exteriores, ao contrário, apresentam simbolicamente a alma de um povo. (VON FRANZ, 2003). Campbell (2003) afirma que a mitologia é, aparentemente, contemporânea da humanidade.
Mitos são histórias, lendas ou contos que representam fenômenos psíquicos e revelam a natureza interior humana. Através de suas tramas e enredos dramáticos condensam e contam, de uma forma simbólica e metaforizada as experiências milenares contidas e vividas, repetidamente, pela humanidade. O fato de se repetir e se reviver os mesmos temas simbólicos em diferentes momentos da história evolutiva da humanidade marca um sentido de recriação nesses símbolos, vez que essas histórias míticas ocupam-se de questões humanas e de um anseio existencial numa tentativa de buscar e expressar a auto-compreensão humana a partir do que é transitório e do que é eterno em nós. J. Houston pensa, poeticamente, num mito “como alguma coisa que nunca existiu, mas que está sempre acontecendo.”
Nas sagas mitológicas encontramos certas oposições ou estruturas que parecem comuns às sociedades humanas, revelando temáticas mitológicas compartilhadas, a exemplo da contraposição entre mortal/imortal, pais/filhos, espírito/natureza, masculino/feminino, morte/renascimento dentre outras. Assim, os mitos falam de nós e para nós, apontam questionamentos e apresentam revelações sobre as questões básicas da existência indicando caminhos e tendências favoráveis ou desfavoráveis relacionadas a padrões (arque)típicos de comportamentos e relacionamentos. A força evocativa da mitologia é parte integrante da nossa cultura viva e de nossa identidade como seres culturais.
Em escavações realizadas, no que hoje se denomina de Grécia Antiga, encontrou-se um antigo receituário médico constando a prescrição dos antigos para àqueles que os procurava. Três eram as indicações prescritas para a cura: 1) o Fármaco, que poderia se tornar antídoto ou veneno para o corpo a depender da dose prescrita ou usada; 2) a Metanóia relacionada a conversão dos sentimentos e, portanto, na sua transformação numa perspectiva psico-emocional e, por fim, 3) a Teastae ou drama/peça teatral, sendo um chamado a assistir ao seu próprio drama num ato teatral a fim de defrontar-se consigo, ver a própria face numa espécie de espelho, via espetáculo (SAJA, 2006).
Para Campbell “os sonhos são mitos privados e os mitos são sonhos partilhados.”. Os mitos são, então, os sonhos da humanidade e, também, seu patrimônio arquetípico. Os mitos, os sonhos, a arte, a sincronicidade são portais de acesso a psique. Uma imagem mítica faz uma conexão entre o tempo e a eternidade entre tudo aquilo que é transcendente e imanente em todos nós, nos conectando com representações inconscientes de situações decisivas da vida humana. Jung (1986) comenta que o encanto que as fábulas e os mitos exercem sobre os adultos tem como fundamento o fato de muitos temas ainda continuarem vivos em nosso inconsciente. É por esse motivo que tanto a coletividade como o indivíduo se reconhecem nessas antigas histórias dando-lhes longevidade. Campbell (2003) reforça essa idéia ao afirmar que os temas fundamentais do pensamento mitológico permaneceram constantes e universais, não somente ao longo de toda a história, mas também ao longo de toda a ocupação da Terra pela humanidade.
Todas as civilizações quando confrontadas por um mistério projetaram símbolos e histórias mitológicas, pois “onde quer que a realidade conhecida acabe, ou seja, quando tocamos a fímbria do desconhecido, aí projetamos uma imagem arquetípica. (…) Quando confrontados por um mistério, os povos antigos projetaram símbolos mitológicos dos quais nasceram os mitos, (…) quando confrontado com um mistério o inconsciente produz imagens – os símbolos” (VON FRANZ, 2003). Os mitos, então, são símbolos representantes de uma sabedoria profunda contida no imaginário coletivo da humanidade.
Portanto, decifrar os mitos significa decifrar a si mesmo. Os mitos evocam sentimentos e estimulam a imaginação na busca de uma nova perspectiva interna que permita uma nova atitude para a vida, afinal…é o ponto onde ele nos toca que o faz vivo!
Para finalizar, é o encontro com o mito pessoal que nos permite confrontar com integridade a inquietante e instigante pergunta feita por Jung (2002): “É a sua aventura (vida) a sua verdade?”
Solana F. S. Passos – Psicóloga clínica (UFBA), pós-graduada em Psicoterapia Analítica Junguiana (IJBA), Especialização em Neuropsicologia (UFBA), Formação em Somatic Experiencing – SE (SETI – Somatic Experiencing Trauma Institute) e em abordagens psicocorporais (Bioenergética). Professora dos cursos de Psicotraumatologia e Arteterapia do Instituto Junguiano da Bahia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CAMPBELL, J. Para Viver os Mitos. São Paulo: Cultrix, 2003
JUNG, C.G. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977
_________. Memórias, Sonhos, Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002
_________. O Desenvolvimento da Personalidade. Petrópolis: Vozes, 1986
PHILIP, N. O Livro Ilustrado dos Mitos. São Paulo: Marco Zero, 1996
SAJA, Antonio. Seminários. Salvador, 2006
VON FRANZ, M. Mitos de Criação. São Paulo: Paulus, 2003