O suicídio de um homem depende do mito que ele constrói para explicar e experimentar a sua vida. Por meio de um sonho, esse mito que faz não encontrar sentido para continuar a viver pode ser modificado e, em lugar de morrer, vem a decisão de viver.
Foi assim que Dostoiévsky, em seu conto O Sonho de um Homem Ridículo, mostrou que o mito da ciência como a única verdade levou um homem à decisão de se matar. Até que um sonho o fez compreender que não se deve fazer a consciência da vida valer mais que a própria vida; nem as leis da felicidade valerem mais do que a própria felicidade. E o fez se perguntar: será a vida mais que um sonho?
Esse conto foi escrito em uma época em que a ciência surgia como uma nova deusa e a única verdade. Era o momento de uma ciência linear, causal e mecanicista, como ainda é a ciência moderna. Jung via os modelos teóricos como metáforas que aspiram a explicar a natureza íntima de um universo que para ele sempre será incognoscível.
A história se inicia com o narrador expressando:
Eu sou um homem ridículo. Agora chamam-me louco,
mas eu não subi de posto.
Louco é o que perdeu a razão. Para ele, perder a razão é melhor do que ser objeto de escarnio com a plena consciência. Em dado momento, olha para o céu e, como quem dialoga com uma pequena estrela, nota que aquele é o momento certo para terminar sua vida com um tiro na cabeça.
Quando nosso coração pede uma conversa com algo tão maior e misterioso quanto uma estrela e toda a abóbada celestial, estamos na verdade fazendo uma oração. Essa situação é análoga àquele nosso pequeno “Eu” dialogando com toda a dimensão desconhecida do nosso ser. Talvez por isso, quando aquele homem caminhou para executar a sua decisão, foi abordado por uma criança que lhe pedia ajuda e ele a ignorou. Era uma menina que gritava pedindo-lhe para socorrer a sua mãe. Aquela criança atrapalhou os seus planos de se matar. Ao chegar em casa, não comete suicídio, passa a refletir sobre sua atitude em relação à pequena. Adormece e sonha.
Nossas sensações e afetos são vestidos com imagens que vão aparecer em nossos sonhos. Essas imagens traduzem símbolos que se agrupam para descrever o mito que melhor manifesta uma ordem interior que inclui o que é pessoal como também o que vai além dele. O mito (e a metáfora) é, talvez, a única linguagem de nosso cérebro arcaico que pode revelar as “verdades” mais profundas da natureza humana. Dessa forma, os sonhos nos ajudam a escolher o caminho que conecta nosso pequeno “eu” à imensidão do desconhecido para cumprirmos a nossa evolução.
No sonho do homem ridículo, ele pega o revólver e se dá um tiro no coração e não na cabeça como tinha pensado em fazer. Depois de morto, é transportado para um planeta em que a vida é plena. Lá se seguem as direções apontadas por suas naturezas.
Nesse tempo e lugar não existia a consciência dos atos, apenas a vivência deles. Era uma vida sem sofrimento, onde não eram importantes classificações como dignos, capazes, etc. Amavam-se mutuamente. No entanto, chegando o homem ridículo, os habitantes desse planeta foram corrompidos – como Adão e Eva no paraíso.
Foi ai que nasceu a volúpia, o ciúme, a crueldade e tudo do que é humano. Desde que se fizeram criminosos, falavam de justiça e criaram códigos para suas defesas. Quando perceberam a maldade existente, começaram a falar de fraternidade. Mal se recordavam do que tinham perdido e não queriam acreditar em sua inocência e felicidade passadas, chegando a rir considerando-as uma fábula.
O homem ridículo se via culpado. Ele foi tomado por uma forte dor na alma, uma opressão no coração e sentiu que estava prestes a morrer quando então acordou do seu sonho. Entendeu que tinha visto a verdade com os seus próprios olhos e acreditou que o mal seja o estado normal dos homens. Desistiu de morrer. Foi procurar a menina que lhe salvou a vida.
No famoso filme A Sociedade dos Poetas Mortos, o prof. Keating lembra aos jovens que “aproveitem o agora e façam de sua vida algo extraordinário”. Com isso ele levou o jovem Neil a enfrentar o pai repressivo desobedecendo-o ao participar de uma peça de teatro. A consequência foi o suicídio do jovem que ocasionou a expulsão do professor. O ator Robin William – prof. Keating – aos 63 anos, segundo o noticiário jornalístico, recaiu no alcoolismo e, após saber que sofria de Parkinson, entrou em depressão e se suicidou.
Hillman, um expoente da Psicologia Analítica, nos diz que é preciso encarar o suicídio não apenas como uma saída da vida, mas como uma entrada na morte. Para ele o que a “alma” busca nas tentativas de suicídio é dar novo significado à vida. Então a questão não é saber se somos pró ou contra o suicídio, mas o que ele significa na psique.
O objetivo da análise é trazer para o homem que sofre um novo mito que permita viver o mundo simbólico e perceber essa menininha que atravessa nosso caminho como ocorreu ao homem ridículo.
A proposta é desconstruir as certezas egoicas, relativizar, reinventar para surgirem o novo e a saída da rotina e assim libertar-se da criação ficcional que como um complexo precisou da expressão da personalidade que busca no suicídio uma morte do mito desfavorável ao amor por si mesmo.
Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br / www.ijba.com.br