A relação entre o começo e o final da vida ou a relação entre vida e morte nos faz pensar na seguinte pergunta: como viver a vida? Enquanto um homem diminui suas funções em relação ao que antes era capaz, outro inicia sua aprendizagem quando começa a dispor de toda vitalidade que a natureza proporciona. Esse é o tema que aprendemos por meio dos interstícios da obra “O Velho e o Mar”.
Ernest Hemingway foi contemplado com o Prêmio Nobel de Literatura, em 1954, com as seguintes palavras para justificar a entrega do prêmio: “Por seu poderoso domínio da arte da narração moderna, mais recentemente demonstrada em ‘O Velho e o Mar’, e pela influência que exerceu sobre o estilo contemporâneo”. Essa obra é uma metáfora que descortina o palco da vida para contemplarmos a luta entre o homem e sua própria natureza.
A novela escrita em 1951, durante o período em que o autor morava em Cuba, conta a história do velho Santiago e o adolescente Manolin, seu aprendiz. Depois de 84 dias sem conseguir pescar nenhum peixe, os pais de Manolin entenderam que o velho tinha má sorte e afastaram o garoto desse convívio em que o idoso e o jovem pareciam unir o começo da vida com o final. O grande círculo que gira em torno de um centro, chamado sentido da vida. Os pais dos adolescentes sempre acham que sabem o que é melhor para eles, por isso não os escutam. Porém, mesmo impedido de pescar com o amigo, o jovem nunca deixou de visitar e de ajudá-lo em algumas tarefas.
Saudoso, porém com determinação, Santiago sai para pescar e logo alcança uma corrente em alto-mar. É aí que o destino lhe arrasta por meio de um grande peixe que fisga sua isca. Homem e peixe lutam por três dias, até o velho conseguir matá-lo e amarrar à lateral de sua canoa. Tal qual Jonas, que foi engolido pela baleia e lá permaneceu durante três dias e três noites, simbolizando um profundo mergulho no inconsciente, também Santiago, com os seus diálogos consigo mesmo, traz a sabedoria resgatada do tesouro oculto sepultado no inconsciente dos homens.
Enquanto volta para a terra, os tubarões atacam para se alimentarem do peixe abatido. Santiago consegue matar o primeiro, depois de uma batalha que foi um combate sem trégua. Naquele momento ele recorre à imagem do seu ídolo, um jogador americano de beisebol, o DiMaggio, tido como um grande campeão de sua época. O velho imagina como seria a luta desse jovem atleta se estivesse em seu lugar naquele momento. Pensa na doença do seu herói, uma “espora de um galo de briga” no calcanhar, e questiona se ele conseguiria fazer tudo com perfeição tendo alguma limitação. Pergunta a si mesmo como quem revela que os jovens também podem carregar as suas barreiras, talvez aquelas de suas experiências de vida. Para o velho, o homem não vale muito, comparado aos grandes pássaros e animais. Ele mesmo gostaria de ser aquele peixe lá embaixo, na escuridão do mar.
A batalha de Santiago continua cada vez mais difícil para vencer o vigor dos tubarões, com o seu corpo esgotado, como descreve Hemingway: “Tudo o que nele existia era velho, com exceção dos olhos, que eram da cor do mar, alegres e indomáveis”. O velho, com as suas mãos feridas pela luta, navegava de volta à medida que apreciava seu peixe gigante tornar-se apenas esqueleto, tal qual acontece quando terminamos de viver. Agora era um velho, um barco e o esqueleto de um grande peixe amarrado em sua lateral. Como acontece aos heróis, aqueles que são capazes de encontrar a redenção onde não parece haver qualquer esperança. Para Santiago “um homem pode ser destruído, porém não derrotado.”
O velho, muito ferido em sua batalha solitária, aproxima-se até ser visto por Manolin, que passou aqueles dias com os olhos observando o horizonte, à procura do seu mestre. Finalmente o garoto pôde tratar das dores do físico e da alma do seu herói. Para Jung, o herói é aquele que desce para depois subir.
Na praia, o barco com a carcaça do peixe torna-se um troféu para que olhem o velho com algum valor. São as marcas de sua luta por uma existência digna para quem sabe estar próximo do fim e busca a transcendência. Os turistas passam admirando aquele cenário, em que havia uma enorme carcaça de um peixe, com um velho dormindo em sua cabana, vigiado por um menino. Santiago consegue então o respeito e admiração dos seus colegas.
Tomando essa história como uma metáfora da nossa existência, assistimos a luta de um idoso com a natureza que aos poucos vai causando “pequenas mortes”, diminuindo seu vigor, sua autonomia, aceitando o combate sem trégua, de um adversário implacável que tem como horizonte a “grande morte”, com a consciência de que envelhecer é viver e aceitar, a cada dia, essas “pequenas mortes”. É diferente da concepção errônea de que envelhecer é morrer.
Santiago e Manolin resumem a relação “puer-senex”, tão importante para simbolizar e compensar no idoso o fato de que há no seu horizonte o deixar de viver. Ao fluirmos no mar da vida, precisamos desse contato com o jovem que já experimentamos ter sido e, nessa relação, ressignificamos algumas experiências, ao tomarmos o garoto como um espelho que nos ajuda a fazer contato com esse menino que ainda nos habita. Por outro lado, para o garoto, é salutar buscar, fora da família, um mentor que possa ajudá-lo nessa separação da matriz familiar, a fim de que consiga sua própria individualidade. Os conhecimentos adquiridos na juventude precisam de um solo fértil para construir um sentimento sólido do eu. Podemos conseguir essa condição quando os pais estão dispostos a compartilhar suas experiências com franqueza.
Hemingway encerra sua novela com o velho sendo cuidado pelo menino. Em sono profundo, Santiago sonha com leões, com a natureza vigorosa do animal, que tem muita força para dar conta de suas necessidades. Sonhos são também uma expressão da psique, a qual, para obter o equilíbrio, compensa trazendo toda aquela força que inexiste no mundo acordado para a experiência onírica, como uma natureza que mostra seu poder coexistindo com seu cansaço e fraqueza.
Como conviver com um corpo que, de vigoroso e jovem, torna-se vagaroso, modificado em sua aparência, abandonando a beleza da juventude e cansado, desajeitado? Para isso, precisamos encontrar o caminho da transcendência. Não podemos abandonar o barco que dá sentido à vida. Vamos poder olhar a morte no horizonte, acolhê-la como parte do viver e simbolizar o morrer para extrair alguma graça da experiência, pois qualquer experiência pode gerar alguma satisfação.
Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br / www.ijba.com.br