Amar um outro ser faz-nos perceber nossa incompletude. Ao notarmos em nós mesmos dois lados como inimigos irreconciliáveis, sentimos a luta entre eles e também a dor de se ferirem para unirem-se em um todo chamado indivíduo. É dessa forma que obtemos o verdadeiro ato de amar a si e ao outro. Portanto, o amor pressupõe um eu dividido em partes que se opõem. Essa é a lição de uma fábula de Ítalo Calvino, que explora o fantástico, cujo título é O visconde partido ao meio.
O visconde Medardo, no intuito de agradar a alguns duques, vai à guerra e é atingido por um tiro de canhão que o divide ao meio. Retorna à sua cidade uma metade do visconde que se revela muito cruel. Quando os habitantes da cidade já estavam desanimados e amargurados, eis que aparece a outra metade como um visconde absolutamente bom. Até que os habitantes percebem que maldades e virtudes igualavam-se na desumanidade, pois pessoas cheias de boas intenções podem ser chatas e terríveis. Por amor a Pamela, essas duas bandas do visconde entram num duelo e se ferem mortalmente. Para salvá-las, o Dr. Trelawney costura uma metade na outra e faz das duas partes um único visconde. Nas palavras do autor, “o homem mutilado, incompleto, inimigo de si mesmo, precisou do amor para tornar-se inteiro”.
Sentir-se pela metade é bem próprio da juventude quando se permite deixar a força natural do desenvolvimento empurrá-la em direção à totalidade, um lugar a que nunca se chega. Em nosso amadurecimento, o sentir-se incompleto deverá continuar para que nos faça sentir que ainda há vida a ser vivida.
Vivemos lidando com a ideia do aceitável e do não aceitável em nossa convivência com aqueles que nos arrodeiam e com os que podem nos dar ou não amor. Escondemos na sombra o comportamento ou ideia que nos pareça fazer perder esse amor e exibimos o que achamos que irá impressionar o outro na ilusão de ser amado. Chega o momento em que nos sentimos divididos e percebemos que parte de nós é desejo e outra parte é renúncia.
Muitas são as feridas que experimentamos em nome da boa educação dos nossos pais e são essas feridas primais que nos atrapalham em fazer parte dessa unidade universal que chamamos natureza. Algumas feridas fazem-nos perder parte de si e, como se estivéssemos atados a um fio invisível, guiamo-nos por ele nessa busca do que possa nos completar. Ao encontrarmos o que estava perdido, unimo-nos pela paixão para depois sentirmos tão opostas as nossas idealizações que precisamos sofrer para nos darmos conta do quanto o ideal é inimigo do real.
Metade de nós revela virtude, outra metade mostra maldade, mas para além dessas metades, existimos. Precisamos sair dessa ignorância de nos sentirmos inteiros. Inteiros por pensarmos que somos só virtuosos ou então apenas destrutivos até que os sintomas apareçam para denunciar a inconsciência dessa unilateralidade.
Ensina a psicologia de C. G. Jung que todas as vezes em que o homem se encontra em um dos seus extremos, sua outra parte avisa-lhe em sonhos. Um homem vivendo sua unilateralidade como o bem absoluto ou o mal absoluto é alguém que prejudica os demais e a si próprio com a sua incompletude. Quando conseguimos alertá-lo desses lados opostos e irreconciliáveis, precisamos de um ego forte para suportar a tensão até que transcenda para uma terceira condição completamente nova. Essa terceira condição é diferente de cada uma das duas outras originais, mas também contém, de algum modo, aquelas mesmas partes opostas entre si.
Quando metade de nós mesmos não consegue amar, e essa condição pertence a outra metade à qual não conseguimos estar unidos, o objeto do nosso amor poderá nos fazer sentir confusão já que não estamos inteiros nesse ato. Uma metade luta com a outra e, apenas quando se ferem é que se torna possível, mediante tratamento, transcender esses opostos incompatíveis para tornarem-se unos e dignos dessa união. Descobrimos que nossa parte perdida estava projetada nos outros e era tracionada pela angústia da incompletude. Dessa forma, o papel do analista é costurar e unir o que antes existia separadamente.
Sofremos com o drama de nos sentirmos inacabados. Sempre estamos por nos completar com alguma busca que muitas vezes aparece na forma de objetos ou atitudes irracionais diagnosticados como angústias existenciais. É o sofrimento da alma do homem sempre a buscar se completar com afazeres e atividades lúdicas, ou mesmo vícios, expressões imaginais do que o completa.
Por outro lado, aqueles que se sentem completos talvez não sintam mais a necessidade de viver para buscar o que lhes falta. A nossa parte boa e a mesquinha nunca conseguem fazer ao outro algo virtuoso, porém a luta entre esses dois lados é a esperança da inteireza. Somente o homem consciente de sua incompletude e em busca de se harmonizar com a natureza que o acolhe, e que ele chama de Deus, é que poderá tornar-se um indivíduo.
Para aqueles que enxergaram a disputa de Hillary Clinton e Donald Trump como o discurso de um lado bom e civilizado contra um lado mau e primitivo, eu convido-os a refletirem sobre o que existe de certeza no que vai ser e o quanto em nós mesmos aparecem esses dois lados disfarçados em sintomas ou modos de vida inapropriados à evolução do ser.
Carlos São Paulo – médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br / www.ijba.com.br