Como o progresso prejudicou os homens que, ao deixarem de se confrontar com a fantástica imensidão do universo, perderam a humanidade e, sem essa humanidade, perderam a razão. Assim o escritor angolano José Agualusa nos conta uma história e, por meio dela, aprendemos sobre o conflito entre obedecer aos padrões coletivos em que estamos imersos ou enxergar algo maior e seguir a nossa voz interior.
O primeiro livro do escritor, lançado no Brasil, Manual Prático de Levitação, contém o conto: “Por que é importante olhar as estrelas”. Conta a história de Fortunato, sujeito incorruptível e um alto funcionário do Estado em Luanda.
Fortunato tinha ido a Londres participar de um encontro internacional de burocratas. Ele sofre com o conceito da Angola no exterior e acredita que poderia melhorar essa imagem trabalhando com técnicos honestos. Quando no hotel, em Londres, deita-se nu e, com o sonambulismo, sai e bate a porta do seu apartamento e adormece deitado no corredor. Ao acordar nu, e sem poder entrar no apartamento, desesperou-se. Foi quando se lembrou de uma lição da sua avó. Ela lhe dizia que o esplendor das luzes elétricas das grandes cidades ocultava o brilho das estrelas, e que isso prejudicou a humanidade. Isto porque o homem deixou de se confrontar com o ilimitado. Foi nessa hora que ele compreendeu a desimportância de sua nudez. Entrou no elevador e foi à recepção. O recepcionista olhou-o. Viu apenas um homem integro. Deu-lhe as chaves.
Dar-se conta de estar nu e o desespero para mostrar-se em sua realidade consequente a um erro inconsciente foi aflitivo até que Fortunato se confrontasse com as lembranças do que sua avó lhe dissera. Dessa maneira ele entendeu que o todo – as estrelas e o grande mistério da vida – supera qualquer vergonha de mostrar-se tal e qual se mostra sua realidade carnal.
A pós-modernidade trouxe um reforço ao mundo material – o mundo do ego. O homem encontrou em suas vestes um modo de substituir a preocupação com a totalidade do seu “corpo-espírito” com apenas a imagem desse corpo. Fortunato em sua incorruptibilidade pôde despojar-se das vestes que impressionam a outrem. Sua nudez mostrou o homem em sua naturalidade, sem a proteção das roupas dos discursos cheios de falsos moralismos. Muitas vezes essa roupa é a esperteza ao fazer negócios que garantam a importância social pelo acumulo material.
No conto de Andersen “A roupa nova do imperador”, o imperador convencido pelo alfaiate acredita que está vestido com uma roupa feita com tecido que só os tolos não podem ver e, ao desfilar nu diante dos súditos, só a inocência de uma criança consegue ver a verdade: o rei está nu e não tem consciência disso. Fortunato sabe que está nu e, ao se apresentar diante do recepcionista do hotel, que o vê nu, é tratado como se vestido estivesse.
A vida do brasileiro tem sido perturbada pelas notícias de corrupção. Muitos se vestiram com as roupas do poder. Condição que exclui o amor, para não ser tratado como “tolo” e sim como “esperto”, tão valorizados em nossa frágil cultura. A maldição do estar nu é arquetípica. No episódio bíblico (Ge. 9:22-27), Noé, embriagado, fica nu. Cam, seu filho, ao observar sua nudez, conta para os seus irmãos. Noé amaldiçoa não o praticante do ato, mas toda sua geração.
Essa maldição pelo pai nu pode nos fazer lembrar a colonização portuguesa que, diferentemente do que os ingleses fizeram com os americanos, vieram aqui para saquear e explorar a terra, vestidos nas roupas da ganância e do abuso. A nudez imoral de nossos ancestrais ao ser observada pelo filho Brasil trouxe a maldição, experimentada por Noé, para toda nossa geração. Segundo a Dra. Denise Ramos (PUC-SP), alguns fogem da vergonha incorporando e reproduzindo o pai-bandido, assumindo uma roupa com a bravata do tipo “comigo ninguém pode”, nem mesmo a lei. Ninguém quer ver essa nudez para não ser tomado como tolo e assim os heróis bandidos são criados.
Ser ético é muito mais do que seguir a voz interior, ou obedecer aos padrões coletivos. Há conflitos e deveres que devemos enfrentar para transcender a luta interna entre nossos próprios valores e os valores da sociedade. Em lugar de nos acomodarmos e de cedermos a um dos lados, devemos usar a consciência para sustentar o conflito e fazer escolhas responsáveis que vão além de observar esses padrões morais da nossa sociedade. Afinal, por trás da ação de um homem está também a sua personalidade inconsciente.
Num país íntegro, talvez como os da Europa Ocidental, o difícil é ser corrupto. Num país essencialmente corrupto, um cidadão incorruptível é olhado com suspeita e, muita vez, insatisfação por toda aquela gente. A suspeita, por ser difícil acreditar na sua incorruptibilidade. A insatisfação, porque perturba a lucratividade dos outros.
Os “Fortunatos” são aqueles que buscam incessantemente conseguir a realização máxima da índole inata e específica de um ser vivo. Somente a pessoa inteira, uma integração criativa e harmoniosa entre o material e o espiritual, poderá mostrar a decisão final. Esse confronto da consciência com o inconsciente, e a cooperação entre essas duas condições explica por que é bom olhar as estrelas. A decisão cômoda impede esse confronto e ficamos sem incluir nosso outro lado desconhecido a fim de evitar sofrimento.