Aos 9 anos, o pequeno Jung admirava com devoção uma bela catedral quando foi tomado por uma fantasia onde, acima da edificação, via Deus sentado num trono dourado. No entanto, teve um pressentimento que algo de ruim viria a seguir, e o medo de dar lugar a qualquer tipo de pensamento blasfemo o fez lutar contra sua própria imaginação.
Nascido na Suíça, o psiquiatra Carl Gustav Jung era filho de um pastor luterano, estando familiarizado com a Bíblia desde criança. Sabia que havia um pecado que, segundo as palavras do próprio Cristo, era imperdoável: a blasfêmia contra o Espírito Santo. Aqui recordo da minha própria infância, quando tive o mesmo temor: no momento em que tomei conhecimento de um pecado tão grave e ao mesmo tempo tão fácil de cometer, tentei desesperadamente excluir os pensamentos pecaminosos da minha consciência, o que provocou o efeito oposto – uma compulsão em pensá-los.
No caso de Jung, foi impossível resistir. Ele lutou por alguns dias e orava, perguntando: “Deus, por que sou forçado a pensar algo que eu mesmo não quero?” Refletindo, chegou à conclusão de que, se algo vinha à sua mente de forma involuntária, deveria vir de Deus. Até o Diabo, origem possível de tais pensamentos, era cria divina e só podia agir conforme permitido por seu criador.
Foi assim que ele decidiu pôr fim a seu tormento e levar a fantasia a cabo. Ao retomar a imaginação, viu sair, de debaixo do trono de Deus, um enorme pedaço de fezes que caía sobre a catedral e a despedaçava. A cena era grotesca e, para os padrões religiosos, certamente blasfema, mas a satisfação que Jung sentiu ao ceder à imposição da sua psique o trouxe tamanho alívio que ele o descreve como um estado de graça, uma iluminação.
A fantasia, não interpretada por Jung em sua autobiografia, pode ser traduzida da seguinte maneira: “de Deus não provém só coisas bonitas e belas, mas também excrementos monumentais e destruidores, que irão despedaçar a construção humana que você tanto admira, a igreja”. Nos anos seguintes, sua fantasia se concretizou ao perceber que seu pai era um homem que acreditava por acreditar, por costume e conveniência, sem raciocinar ou discutir os pontos importantes da fé cristã. Ao perceber que a profissão de fé das pessoas ao seu redor era morna e protocolar, sem a vida trazida pelos estados de graça da vivência religiosa e sem a riqueza do debate intelectual, decidiu abandonar a religião.
O Deus do antigo testamento era um ser capaz tanto de bondade como de maldade – palavra cujo eufemismo teológico é o termo “justiça divina”. Em várias passagens na Bíblia, Javé mostra ser capaz de atos cruéis por motivos que hoje dificilmente consideraríamos humanos, quiçá divinos: vingança, exibição do poder, ou até sem motivo aparente. No livro de Samuel, é possível ler que há ordem de Deus para que o rei Saul, numa guerra, mate não só os soldados, mas também as mulheres, crianças e animais. Na conhecida história do êxodo, é mencionado de forma explícita que Javé propositalmente fez com que o faraó resistisse a libertar seu povo, para que através disso ele realizasse suas maravilhas e fizesse seu nome ser conhecido às custas do flagelo egípcio. No livro de Naum, o profeta diz que Deus é “ciumento e vingador” e “guarda rancor contra seus inimigos”. Na oração mais conhecida do cristianismo, Jesus pede que Deus “não nos conduza à tentação”, como se devêssemos pedir a Ele que nos proteja dEle mesmo…
O lado sombrio da divindade manteve os cristãos em xeque durante toda a idade média. A ameaça do castigo eterno ajudou a fazer da Igreja Católica a instituição mais poderosa do mundo ocidental por centenas de anos, o que torna compreensível o declínio do interesse pela religião que se seguiu ao Renascimento. O homem moderno, livre da ameaça do inferno e das amarras religiosas que impediam que este adquirisse um conhecimento não-canônico do universo, aprendeu a buscar no mundo externo, na realidade dos objetos, as respostas para suas perguntas. As respostas fornecidas pela religião, baseadas numa mitologia de milênios de idade, comprovaram-se desatualizadas.
Hoje vivemos em uma cultura onde só é considerado legítimo o que é comprovado por pesquisas científicas. É verdadeiro aquilo que pode ser observado, repetido, medido e calculado. Nisto, Jung enxergou uma mudança coletiva de orientação psicológica: a atitude principal da psique geral passou a ser extrovertida, isto é, a libido é investida preferencialmente no objeto externo.
Contudo, a psique não funciona apenas na orientação extrovertida da libido, mas também na oposta, a introvertida. Quem tem esta atitude como principal dá muito mais valor às imagens, sensações, pensamentos e sentimentos que vêm de dentro, que não podem ser traduzidos numa linguagem matemática de compreensão universal, detectadas por aparelhos ou sequer serem compartilhadas com o outro com facilidade. Ao perder a primazia cultural e institucional, o cristianismo levou consigo também a introversão como forma de comunhão com uma instância que é tão real e importante quanto o mundo externo. O cientista que pretende ser um instrumento perfeito de apreensão do mundo externo ignora que o universo é também uma construção da sua psique, dos seus desejos e expectativas, refletindo seu mundo interior. Como reconhecido pela física quântica, o ato de medir altera aquilo que é medido, o ato de observar e descrever o mundo o transforma. Estamos longe de poder perceber a realidade de forma completamente objetiva. Antes, construímos o mundo tanto quanto o percebemos. No esforço para compreender o universo de forma objetiva, esquecemos que o objetivo e o subjetivo são inseparáveis.
Se a ciência é indispensável como método de conhecimento, interpretação e relacionamento com o mundo material, a religião – enquanto sistema psicoterapêutico – é vital para o relacionamento com o mundo interior da psique, para a saúde mental, física e com efeito positivo na expectativa de vida. Porém, enquanto usamos a matemática para descrever a realidade externa, a realidade interna só pode ser descrita por símbolos. Uma imagem onírica, uma personagem heroica, uma narrativa mitológica são formas que o inconsciente tem para enviar dados ao Eu, aquele que os interpreta e é o mediador entre as realidades interna e a externa. Da mesma forma que a temperatura e a umidade do ar são preditivos metereológicos, os sonhos e as fantasias são evidências de eventos que acontecem no inconsciente e estão em vias de emergir em nossas vidas conscientes. A fantasia do Jung criança foi um desses sinais, que veio para avisar que uma transformação ocorria dentro dele: para manter o desenvolvimento do seu intelecto, ele deveria abrir mão da idealização da tradição religiosa familiar e de seu pai como modelo de homem. Romper com a família e com a tradição são decisões importantes e difíceis de todo aquele que cria algo novo. Os sinais que emergem à consciência nos preparam para as transformações vindouras: se os ignorarmos, pagaremos o preço sofrendo de forma violenta as inevitáveis mudanças à nossa revelia.
Somente após 66 anos Jung conseguiu expressar publicamente seus pensamentos sobre o cristianismo. No livro Resposta a Jó, publicado em 1952, Jung expõe a crueldade de um Deus que, cedendo a uma provocação de Satanás, tirou todos os bens, matou todos os filhos e ainda deu a Jó uma doença incurável, simplesmente para “vencer uma aposta” com o demônio. Na cultura oriental, é corriqueira noção de que o bem e o mal são complementares e necessários um ao outro, mas o cristão ocidental tem a pretensão de excluir o mal da sua vida. Segundo Jung, Javé é o símbolo de uma totalidade que inclui tanto o bem quanto o mal, a justiça quanto a injustiça, tanto a criação quanto a destruição. A evidência disso é a coabitação entre Deus e o Diabo no livro de Jó, representando dois aspectos de uma só coisa. Jó, por sua vez, seria o expoente de uma consciência humana mais amadurecida, que se afasta do mal e questiona a ambiguidade primitiva divina. Para se tornar melhor, Deus, enquanto modelo abstrato da totalidade inconsciente, precisou encarnar num homem, Jesus. Cristo é Javé feito homem, isto é, o inconsciente tornado consciente. Mas no momento em que, através de Jesus, Deus se torna mais amor e menos “justiça”, ele pende para a luz e gera o seu oposto na forma da personificação do mal, que aparece no último livro da Bíblia sob o nome de Anticristo – pois o equilíbrio é inevitável. Vivemos assim o oposto compensatório a séculos de aspiração fortemente espiritual da cristandade, um materialismo cético, anticristão. Este desenvolvimento é descrito em linguagem simbólica na astrologia pela chamada era de peixes (cujo signo mostra dois peixes que apontam para lados opostos), vigente nos últimos dois mil anos.
Quando tentamos atingir a perfeição representada por Cristo, negamos tudo aquilo que é sombrio, negativo, imperfeito. A completude, a totalidade, é diferente da perfeição. E este dilema é expresso pela imagem do Jesus crucificado: o homem-Deus busca a perfeição, mas é dilacerado pela necessidade interior da completude. Enquanto a evolução moral exige que se abandone o mal, o egoísmo, o narcisismo, a vida dissoluta, há no homem um complexo instinto que exige que nos tornemos completos, que vivamos o que ficou pendente, que nos reconciliemos com tudo o que foi reprimido e rotulado como mau e inferior. A via crucis daquele que busca o pleno desenvolvimento psíquico está na oposição cada vez mais intensa entre trair o outro e trair a si mesmo. Atender plenamente ao coletivo esvazia o indivíduo, mas atender apenas a si mesmo desliga o homem dos seus semelhantes e torna tudo sem sentido. Para aquele que busca a iluminação, só resta atravessar a noite escura e renascer numa possibilidade excepcional que una os opostos. É este mistério psicológico que é simbolizado pela paixão de Cristo e deverá guiar um entendimento atualizado do que significa o religare, a reconciliação consigo mesmo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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POWELL, L. H., SHAHABI, L., THORESEN C. E.. Religion and Spirituality: Linkages to Physical Health. Disponível em: https://psych415.class.uic.edu/Readings/Powell,%20Religion,%20spirituality,%20health,%20AmPsy,%202003.pdf. Acesso em 8 de novembro de 2018
Este texto resume alguns dos temas da aula Psicologia e Religião, de autoria de:
Paulo Nunes – Médico graduado pela UFBA em 2005. Especialista em Psicoterapia Analítica pelo IJBA em 2018.