A Psicologia Analítica nos ensina que o inconsciente coletivo contém toda a herança espiritual da evolução da humanidade, e não podemos separar o corpo da alma, porque psique e a matéria são fenômenos interrelacionados e não reduzíveis um ao outro. Assim como o instrumento musical não faz a música, a matéria cerebral não faz a psique, e a resultante desta união é a consciência e sua melhor produção, capaz de integrar e transcender a dicotomia matéria e espírito, são os símbolos, elementos fundantes na construção evolutiva do ser humano, registrados na cultura. Por isso, Psicossomática não pode ser apenas um adjetivo para designar alguns tipos de sintomas, mas realidade substantiva da existência humana.
A Psicossomática de espectro junguiano, nos permite afirmar que todos os sintomas de adoecimento possuem etiologia ideogênica, e que eles podem ser expressos no corpo, na mente ou nos relacionamentos. As ideias estão na base das representações mentais, transitando e incluindo tanto as dimensões concretas e materiais quanto as abstratas e quiméricas, incluindo o universo imaginal. Iludidamente, acreditamos que temos ideias, mas são elas que nos têm e, na maior parte das vezes, são produções inconscientes, atreladas a complexos e arquétipos. Elas interpenetram todas nossas instâncias, consciente ou inconscientemente, afetando e desencadeando emoções que, por sua vez, produzem mais afetos, podendo eclodir na forma de um núcleo ideoafetivo vicioso. Quanto mais intenso o afeto, maior a emoção desencadeada e, consequentemente, mais afetação que, por sua vez, desencadeia mais emoções. Por isso, muitas vezes, na obra junguiana, afetos e emoções podem virar sinônimos, que interferem no complexo do Ego.
Quando essa situação viciosa acontece, junguianamente, dizemos que constelou um complexo e, neste caso, tanto as funções da consciência, com suas propriedades de julgar, diferenciar e discernir por meio do pensamento, sentimento, sensações e intuições, quanto a estrutura neurocerebral, que regula nossa homeostase corporal e as propriocepções, ficam alteradas, podendo produzir delusões. Se o afeto ativar um núcleo ideoafetivo significativo, a energia psíquica flui para ele, o complexo do ego perde espaço para o complexo ativado, que pode funcionar como uma personalidade autônoma, aflorando imagens arquetípicas e ideias carregadas de emoção da sua rede associativa do complexo, retroalimentando, tautologicamente, a circularidade entre emoções e afetos.Sinteticamente, o complexo é uma espécie de afeto associado a imagens que personificam temáticas universais, alimentadas e ampliadas pelas experiencias pessoais. Quando ativado é capaz de desencadear alterações físicas, bioquímicas, hormonais e mentais, desencadeando emoções produtoras de mais afetos, retroalimentando o complexo ao atrair mais energia psíquica para ele, que tem em seu núcleo os arquétipos.
Quando um profissional de saúde pretende diagnosticar um sintoma, levando em consideração que diagnose significa atravessar para conhecer e depois discernir, é necessário, além da anamnese, que é o resgate da memória afetiva emocional e biopatológica do doente, visitar todos seus lados, com profundidade, levando em consideração suas idiossincrasias e particularidades, perante toda diversidade e pluralidade existencial, diferenciando-o do genérico, inclusive das famigeradas tabelas de padrões e normas estatísticas e do reducionismo causal baseado em evidências do nefasto positivismo que contaminou seguimentos da ciência. Desta forma, é um ato de violência para a integridade do ser essa medicina que examina o sintoma separado do todo, como se fosse possível fazer um campo cirúrgico que isole a Alma, as angústias, os ressentimentos, as mágoas, os medos, as ansiedades, os traumas, as culpas, e todos os conflitos neuróticos advindos dos embates entre o ego e a sombra, a persona e seus contrapontos sexuais – anima/us, e as infindáveis demandas adaptativas e teleológicas que nos atravessam.
A vida não é um problema, mas um mistério! Os problemas surgem para que possamos evoluir, com a ampliação da consciência e aquisição do autoconhecimento, quando conseguimos decifrar os enigmas de forma simbólica imaginal, evitando dividir o incognoscível, para não ficarmos diabolizados ao ficarmos cindidos e divididos, como aconteceu com Édipo, ao solucionar literalmente o problema proposto pela Esfinge. Isso vale quando somos visitados pelas doenças que servem para que possamos encontrar nosso curador interno, em busca da integração da doença com a saúde e não sua eliminação. Porém, esse processo de cura só vai acontecer quando houver prontidão e essa ninguém sabe quando vai acontecer. Como afirma Jung:
“… O segredo do mistério criador, assim como o do livre-arbítrio, é um problema transcendente e não compete à psicologia respondê-lo. Ela pode apenas descrevê-lo. Do mesmo modo, o homem criador também constitui um enigma, cuja solução pode ser proposta de várias maneiras, mas sempre em vão” [CW 15 §155].
Ao encararmos os sintomas, sejam eles quais forem, como expressões simbólicas, evitamos o padrão esteriotipante e patologizante que objetiva, com suas tabelas de classificação das doenças, estabelecer procedimentos invasivos, por serem de fora para dentro, com suas prescrições quimiátricas e ou cirúrgicas, sem levar em consideração a dimensão a anímica e espiritual do doente, por não aceitarem a Psique com a mesma ou até maior importância do que o corpo. Jung, nesta carta de reposta a um interlocutor nos dá uma boa justificativa para a resistência de tantos profissionais de saúde não conseguirem aceitar a Psicossomática como fator determinante para o sucesso da cura ou do fracasso terapêutico:
“Não tenho a mínima ideia do que seja “psique” em si; quando quero refletir e falar sobre ela, devo falar de minhas abstrações, conceitos, pontos de vista e imagens, sabendo perfeitamente que se trata de nossas ilusões específicas. É isso que eu chamo de “non-concretisation” […] A ciência é a arte de criar ilusões adequadas que o louco aceita ou recusa; mas o sábio alegra-se com sua beleza ou com sua riqueza ou com sua riqueza de sentido, sem estar cego para o fato de que são véus e cortinas que escondem a escuridão abissal do desconhecido. […] Coisas reais são efeitos de algo desconhecido. O mesmo vale para anima, ego, etc. Além do mais não existem coisas reais que não sejam relativamente reais. Não temos ideia da realidade absoluta, pois “realidade” é sempre algo “observado.” [Cartas Vol. I pg. 73]
Não existem doenças, mas sim pessoas doentes com seus conteúdos e aspectos de mais característicos de sua personalidade, e as formulações teóricas apenas podem considerar traços coletivos, mais comuns a muitos indivíduos. Porém, isso é o menos importante na doença, por negar o indivíduo, suas peculiaridades e seus valores. Da mesma forma, Jung nos ensina que:
“[…]toda tese psicológica ou toda a verdade referente à psique deve ser imediatamente invertida a fim de que possa ser formulada de acordo com a verdade. Por exemplo: alguém é neurótico porque reprime ou porque não reprime; porque tem a mente repleta de fantasias sexuais infantis ou porque não tem nada disso; porque apresenta inadaptação infantil ao ambiente ou há exagero de adaptação (isto é, exclusivamente) ao ambiente; porque vive segundo o princípio do prazer ou porque não o segue; porque é exageradamente inconsciente ou porque é excessivamente consciente; porque é egocêntrico ou porque age muito pouco em função de si próprio etc. Essas antinomias, que podemos aumentar à vontade, mostram claramente como a teorização, neste campo, é tarefa difícil e ingrata. [CW17 §203].
Todos os sintomas são produtos do inconsciente e fazem parte deles até as opiniões e convicções defendidas pelo doente, principalmente quando estas colidem com seu Ethos. Para o compreendermos é necessário que o profissional de saúde estimule que o doente questione os porquês e, principalmente, os para quês eles se fazem presentes na sua vida, contextualizando, escutando seus sonhos e fantasias, identificando os complexos dominantes e a história do doente, incluindo sua transgeracionalidade, com as reinvindicações ancestrais. Com relação aos sintomas de adoecimento das crianças, devemos fazer uma profunda anamnese em seus pais e cuidadores, porque, na maior parte das vezes, a neurose está neles e as crianças funcionam apenas como uma espécie de antena parabólica que capta e recebe a dinâmica psíquica e todos os conflitos deles. Por isso, para que a criança seja saudável e feliz ela precisa estar num ambiente igualmente saudável e feliz, conforme cita Jung;
“A criança tem uma psicologia singular. Assim como o seu corpo, durante a vida embrionária, é uma parte do corpo materno, também sua mente, por muitos anos, constitui parte da atmosfera psíquica dos pais. Este fato esclarece de pronto por que muitas das neuroses infantis são muito mais sintomas das condições psíquicas reinantes entre os pais do que propriamente doença genuína da criança. Apenas em parte a criança tem psicologia própria; em relação à maior parte ainda depende da vida psíquica dos pais. Tal dependência é normal, e perturbá-la se torna prejudicial ao crescimento natural da mente infantil” [CW 17 §143].
Os sintomas, assim como os sonhos, os fenômenos de sincronicidade e as produções criativas, têm função compensatória. Eles podem ser indicativos de que o indivíduo não está em sintonia com o Self, por ter desviado de seu caminho natural, tornando-se vítima de suas próprias ambições ou de seus propósitos ridículos, por não estar contemplando o sentido e o significado da sua vida. Caso não seja dada importância a esses avisos, a fenda, entre o eu e o inconsciente, irá ficando cada vez mais larga e ele nela cairá, indo até o fundo do poço.
Acredito que a maioria dos profissionais de saúde desvalorizam essas afirmações, por medo de terem que encarar sua Psique. A consequência disso é que eles perderem suas almas. Deve ser por isso que, nestas profissões estão os maiores índices de suicídio, comportamentos de risco, uso abusivo de substâncias psicoativas, lícitas ou ilícitas, e muitos transtornos psiquiátricos.
“[…] tudo o que a psicoterapia tem em comum com a sintomatologia clinicamente detectável, isto é, com as constatações da medicina, sem ser irrelevante, é apenas secundário, na medida em que o quadro clínico da doença é um quadro provisório. O que é verdadeiro e essencial, no entanto, é o quadro psicológico, que só pode ser descoberto no decorrer do tratamento, por trás do véu dos sintomas patológicos. As ideias tiradas da esfera da medicina não bastam para aproximar-nos da essência das coisas psíquicas. Mas, apesar de que a psicoterapia – como parte da arte de curar, e por diversas razões de peso – nunca deveria escapar das mãos do médico, e, por isso mesmo, deveria ser ensinada nas Faculdades de Medicina, ela é obrigada a buscar subsídios importantes nas outras áreas da ciência. Aliás, isso já foi feito por outras disciplinas, dentro da medicina, há muito tempo. Mas, ao passo que a medicina geral pode restringir-se aos subsídios fornecidos pelas ciências naturais, a psicoterapia precisa também da ajuda das ciências humanas.” [CW 16/1 §210]
No parágrafo acima Jung faz crítica a essa medicina reducionista e positivista, baseada em evidências, ao afirmar que o reconhecimento da alma humana jamais deveria ter deixado de ser ensinado nas faculdades de medicina, porque os sintomas são transitórios, mas a essência do doente não é. Da mesma forma, o conhecimento da Psicossomática, como realidade universal presente na existência humana, também deveria ser obrigatório na grade curricular. Para que os médicos, apesar das suas necessárias especializações, poderiam compreender a outra alma humana que está na sua frente pedindo ajuda, assim como poderia interagir, numa parceria proativa, virtuosos e complementar, com os analistas, ao reconhecerem que os sintomas são janelas de oportunidade para o autoconhecimento e para a cura, compreendendo-os também na sua dimensão metafórica, simbólica e pedagógica evolutiva, por terem, simultaneamente, causas, sentidos e significados.
No que tange a responsabilidade do analista junguiano, diante de um sintoma de adoecimento, ele precisa estimular a pessoa, que está com sintomas de adoecimento físico, a procurar profissionais da saúde, inclusive especialistas, mas somente aqueles que ainda estão humanizados, que reconhecem que a força resultante da integração das dimensões biológica, psicológica, familiar, social, laboral, amorosa e espiritual contribuíram para a eclosão da doença. Aquele que vê apenas o sintoma, sem a compreensão Psicossomática, ávido por diagnóstico e imediata supressão da queixa, desprezando o ser integral, com seus complexos, os aspectos criativos, poéticos e sombrios, nem deveria ser chamado de profissional de saúde, porque vive apenas em função da doença! Aliás, esse tipo de “profissional” brevemente será substituído por robôs de inteligência artificial, que farão isso infinitamente melhor, por serem materialistas, binários, ordinários, objetivos, redutivos causais e estatísticos, por não terem alma, poesia e amor.
11/09/2020
Paz e Bem, graças ao reconhecimento e aceitação consciente da Guerra e do Mal que habitam em nós!
WALDEMAR MAGALDI FILHO. Psicólogo, especialista em Psicologia Junguiana, Psicossomática, Arteterapia e Homeopatia. Mestre e doutor em Ciências da Religião. Autor do livro: “Dinheiro, Saúde e Sagrado”, Ed. Eleva Cultural, coordenador dos cursos de especialização em Psicologia Junguiana, Psicossomática, Arteterapia e Expressões Criativas do IJEP – oferecidos em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. Prof. do Instituto Junguiano da Bahia.