Começo indagando: como contribuir para uma época tão difícil, quando existe uma inversão total de valores? Qual é a nossa responsabilidade cósmica, planetária? Estar imerso nesse turbilhão e não ser afetado por ele é impossível, principalmente pelas questões ecológicas – e me refiro à Ecologia como uma rede de interligação entre o homem e a natureza, um entrelaçamento em fios invisíveis, energicamente sentidos numa relação com o todo, numa proposta de resgatar o rompimento entre a natureza e a cultura.
Como pensar isso, especialmente na Clínica? Creio que, a partir das ideias de Simondon (2014), não existe identidade e, sim, individuações construídas pela dissolução das estruturas, apoiadas na base primeira, que é a relação, ou seja, não em termos de paralelismos conceituais. Isso gera uma infinidade de movimentos num campo inter- relacional com todos os seres, saindo do foco no homem e chegando à emanação com todos os seres existentes, planetariamente, onde a vida é vista como uma rede viva de relações, numa contínua dança…
O que sentir numa sociedade moderna, pautada em valores externos de sucesso, poder, competição, ganho financeiro, com um total desrespeito à natureza, a qual é vista unicamente para servi-lo, onde a troca e a sabedoria com todos os seres se perderam? (MARONI, 2019).
Lembremos os ensinamentos dos índios norte-americanos, por exemplo, nos seus processos de descoberta do ser – de si mesmo com a natureza (SAMS, 1975).
Sinto que validamos tais valores, pois nos reportamos às pessoas como bem- sucedidas, realizadas, porém, muito provavelmente afastadas da conexão consigo mesmas, distantes das suas necessidades internas, segundo observamos na Clínica. Como perceber e responsabilizar-se por seu entorno? Sentir-se parte integrante e responsável de um todo cósmico?
É possível que a revelação de si, também, possa sensibilizar sua relação com o todo, ecologicamente, de sorte a ocorrer por um processo transferencial na análise? É uma possibilidade instigante!
Como pensar a transferência? Acredito que se dê num ambiente em que se possa sentir, numa troca energética e genuína, perante a atitude atenta e presente do analista, mas, ao mesmo tempo, não diretiva, tampouco elucidativa ou sugestionável, favorecendo assim a expressão do inconsciente, no qual não se sabem as respostas, absolutamente nada: todavia, talvez o saber possa nos levar a saber!
Jung (1971a) definiu transferência como uma “[…] abundância de projeções que funcionam como um substituto da relação psicológica real”, bem como a súbita ruptura daquilo que poderia ser “[…] desagradável ou perigoso”. Tal ruptura, inclusive, poderá levar o paciente a cair numa solidão insuportável, ao deixar de se relacionar por completo com outro ser humano (§ 284). A transferência é produzida, em parte, pela revelação dos pensamentos secretos do paciente ao analista (JUNG, 1971b § 433).
John Beebe (1984) ressalta que o que mais influi no tipo de transferência desenvolvido por um analisando é a maneira como este sente a empatia do analista, pela relação entre o perfil tipológico do analista e do analisando, pelo grau de compreensão empática entre eles.
É inegável que a participação da personalidade do terapeuta é um fato comprovado pela constatação de que o analisando se transforma somente à medida que o terapeuta também se transforma, porquanto o terapeuta apenas consegue levar seu paciente até onde ele mesmo foi capaz de chegar.
Jacoby (1984), afirma que é importante o analista manter o contato com as próprias feridas, tanto quanto possível, para não causar dano ao paciente, ao praticar jogos neuróticos de transferência e contratransferência.
Comenta Jung (1971, § 364 e 367) que mesmo o mais experiente psicoterapeuta verificará repetidamente que é envolvido num vínculo, numa combinação baseada numa inconsciência mútua. E, embora possa acreditar que ele próprio está de posse de todo o conhecimento necessário referente aos arquétipos constelados, no final, ele descobrirá que realmente existem muitas coisas com as quais o seu conhecimento acadêmico nunca sonhou.
Vamos pesquisar, engajados num ofício, trabalhando arduamente, corajosamente, num contato contínuo com coração e pensamento, na prima matéria, sem nenhuma perspectiva de sabermos o que emergirá dali, daquele encontro analítico. A teoria pode
nos apoiar, pode ser um poço onde estão contidos os conhecimentos e as ricas experiências que nos amparam, neste emaranhado e confuso encontro (KELLY, 2019).
No processo transferencial, importa promover a autonomia interna do paciente, para que ele venha se tornar o protagonista da sua própria história. Já ao analista lhe cabe trabalhar as suas próprias angústias, ansiedades e impotências, a fim de que evite cair nas armadilhas de querer resolver as questões do outro, acreditando que é possível.
Contudo, é preciso não perder a esperança de sonharmos com uma sociedade mais interativa e humana, onde a compaixão por todos os seres esteja presente; para isso, precisamos confiar no processo analítico e na sabedoria e autonomia da psique.
BEEBE, J. Transferência e Contratransferência, Tipos psicológicos em transferência/contratransferência e a interação terapêutica. São Paulo: Cultrix, 1984.
KELLY, T. A atitude analítica. Palestra no IJUSP, São Paulo, 25 set. 2019.
JACOBY, M. O encontro analítico: transferência e relacionamento humano. São Paulo: Cultrix, 1984.
JUNG, C. G. Ab-reação, análise dos sonhos e transferência. CW.16b. Petrópolis-RJ: Vozes, 1971a.
JUNG, C. G. Freud e a Psicanálise. C.W. 4. Petrópolis-RJ: Vozes, 1971b.
MARONI, A. Carl Gustav Jung e Gilbert Simondon: processo de individuação. Maratona no IJUSP, São Paulo, 20 set. 2019.
SAMS, J. Cartas do Caminho Sagrado. Rio de Janeiro: Rocco, 1975.
SCOTT, D. Gilbert Simondon’s psychic and colective individuation. Cap. III A afetividade e a individuação. 1. ed. eBook Kindle, Amazon, 2014.
Especialista em Psicoterapia Junguiana pelo IJBA,
Mestra pela PUC-SP e Membro Candidata do IJUSP/AJB/IAAP.
Contato – (11) 995316467