Qual o valor terapêutico de um arquétipo?

Por Márcio de Abreu

Farei alguns rodeios para responder a essa questão. Não porque sejam necessários, mas como pretexto para tecer algumas considerações teóricas sobre a Psicologia Analítica e, assim, contribuir para seu entendimento. Dito isso, afirmo que a resposta (ou ao menos uma das muitas possíveis) exige a compreensão do que se passa no limiar entre o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo, bem como da distinção entre um arquétipo e uma imagem arquetípica.

Comecemos por uma das definições de inconsciente coletivo dadas pelo próprio Jung: “o inconsciente coletivo é tudo, menos um sistema pessoal encapsulado”. Por mais paradoxal que pareça – afinal, se algo é tudo menos uma determinada coisa, conclui-se que esse algo não é tudo -, essa definição é um ponto de partida para a resposta que busco oferecer. Sendo tudo menos um sistema pessoal encapsulado, o inconsciente coletivo está, de algum modo, presente no inconsciente pessoal sem necessariamente o ser. Isso implica uma certa permeabilidade das fronteiras que delimitam os conteúdos psíquicos inconscientes relacionados à trajetória individual do paciente. Essa ideia se sustenta no pressuposto teórico de que todo complexo possui um núcleo arquetípico; ou seja, toda configuração complexual contém uma dimensão suprapessoal que remete a um potencial latente de comportamentos e experiências humanas.

Por outro lado, sabemos que tudo o que transcende a dimensão pessoal do inconsciente só se torna cognoscível por meio da expressão simbólica. Assim, tanto a consciência do paciente quanto a do analista só podem acessar esses conteúdos por intermédio da projeção. Isso ocorre porque os conteúdos do inconsciente coletivo – os arquétipos – tornam-se acessíveis à consciência apenas por meio de seus efeitos ou de uma imagem que os represente. Por essa razão, Jolande Jacobi adverte que, ao nos depararmos com o conceito de arquétipo na obra de Jung, devemos considerar se o termo se refere ao arquétipo em si – a essência invisível que repousa no inconsciente coletivo – ou à sua representação atualizada, a imagem arquetípica que se expressa no material psíquico consciente.

Antes de prosseguir, faço algumas observações. Primeiro, em termos junguianos, o conceito de “imagem arquetípica” não se reduz a uma representação visual de uma determinada essência. Ele inclui todas as formas de manifestação de temas e motivos que, em certa medida, podem ser encontrados em todas as culturas e indivíduos, cuja representação pode ou não conter elementos visuais. Essas formas de manifestação incluem mitos, lendas, contos de fadas, ideias religiosas, sonhos, visões e fantasias, que nos permitem identificar padrões típicos, gerais e recorrentes de comportamentos e experiências humanas.

Em segundo lugar, ao alcançar a consciência – ou seja, ao converter-se em imagem arquetípica – , o arquétipo é sempre atualizado em função da vida “interior” e “exterior” do paciente. Em outras palavras, embora universal e atemporal, ao se manifestar em uma imagem arquetípica, o arquétipo assume contornos que o situam no tempo (história) e no espaço (sociedade). Com isso, nos aproximamos de uma possível resposta à pergunta que inaugura este texto.

Partamos do pressuposto de que toda imagem arquetípica resulta da interação dinâmica entre aspectos pessoais e suprapessoais. No que diz respeito à dimensão pessoal, refiro-me ao sistema de sentidos do paciente: suas impressões, pensamentos e sentimentos em relação às experiências passadas e presentes. Quanto à dimensão suprapessoal, incluo tanto os conteúdos do inconsciente coletivo quanto o contexto histórico e social em que o paciente está inserido.

Podemos então argumentar que a imagem arquetípica, além de representar um arquétipo como potencial latente, é também moldada pelo contexto social (normas, valores, práticas cotidianas, relações interpessoais etc.) e pelos registros emocionais que orientam o sistema de sentidos do paciente, possibilitando, assim, a relação dialética entre o pessoal e o suprapessoal que caracteriza a clínica analítica. Por essa razão, a imagem arquetípica não se cristaliza em uma configuração fixa, mas constitui uma unidade dinâmica, complexa e multidimensional, que se reconfigura ao longo do tempo e à medida que seus aspectos arquetípicos alcançam a consciência do paciente e do analista.

É certamente razoável o número de abordagens psicológicas que reconhecem a influência de processos históricos e sociais sobre nossas experiências subjetivas. Em contraponto, a genialidade de Jung reside no fato de ir além da relação entre o individual e o social, reconhecendo que os conteúdos psíquicos do paciente não se reduzem a eventos biográficos situados em um dado contexto histórico e social, mas também fazem parte de uma estrutura psíquica mais ampla, universal e atemporal.

Com isso, encontramos no próprio paradoxo da definição de inconsciente coletivo fornecida por Jung um dos valores terapêuticos dos arquétipos: ao emergirem na consciência sob a forma de imagens arquetípicas, eles permitem que o paciente se distancie de uma identificação literal com seus conteúdos psíquicos. Esse distanciamento favorece uma ressignificação de seus dilemas e angústias, que deixam de ser experimentados como problemas exclusivamente pessoais e passam a ser reconhecidos como temas universais da condição humana, de modo a ampliar a compreensão do paciente sobre si mesmo e abrir espaço para novas possibilidades de sentido e transformação psíquica. A beleza da Psicologia Analítica está justamente em nos revelar, por meio das imagens arquetípicas, que nossos dilemas e angústias são, em essência, os dilemas e angústias de toda a humanidade.

Referências

Jacobi, J. (2016). Complexo, arquétipo e símbolo na psicologia de C. G. Jung. Petrópolis: Vozes.

Jung, C. G. (2016). OC 9/1 Os arquétipos e o inconsciente coletivo [ePub]. Petrópolis: Vozes.

Márcio de Abreu – Analista junguiano formado pelo Instituto Junguiano da Bahia (IJBA). Doutor em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em Teoria Crítica e Estudos Culturais pela University of Nottingham e em Cultura e Sociedade pela UFBA. Bacharel em História com Habilitação em Patrimônio Cultural pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL).