Quando eu estou invisível

Por Carlos São Paulo

Platão conta a história de um pastor chamado Giges, que encontrou um cadáver que usava um anel. Quando o pastor pegou o anel e o colocou em seu próprio dedo, descobriu que, ao usá-lo, tornava-se invisível. Percebendo essa condição, passou a fazer ações condenáveis que nunca antes fizera. Platão, então, pergunta: como então um homem com esse anel poderia agir, sendo ele um homem justo ou não?

Os níveis de consciência entre os humanos é uma espécie de medida do quanto cada indivíduo se distancia dos animais, pois estes seguem uma vida padronizada e obedecem à programação dos instintos. Eles não possuem compromisso com a moral e a ética; são a nossa capacidade reflexiva, a qual permitirá que modifiquemos as expressões instintivas ativadas. Em um bom estágio evolutivo, seremos capazes de nascer, agir e morrer com dignidade e honra.

            Na psicologia de Jung, indivíduos inconscientes da existência de uma personalidade que nos aproxima dos répteis são capazes de usar o anel de Giges em detrimento da sua humanidade, produzindo as injustiças, que vão deixando, pelo caminho, as suas vítimas pisoteadas, sem notar que elas existem.  

            Não somos portadores de apenas uma personalidade; temos um feixe delas. Na maioria das vezes, as ações que pelas quais somos punidos e pagamos um preço alto são produzidas por uma personalidade que desconhecemos. No entanto, o eu consciente é capaz de sentir a responsabilidade ética e conter os interesses sem sucumbir ao poder do anel de Giges.

            Durante nosso desenvolvimento, confrontamo-nos com os acontecimentos da vida e organizamos os que chamamos de complexos. Estes registram nossas experiências passadas, que vão sendo reforçadas a cada situação análoga com a qual nos confrontamos. O bom analista, ao ouvir a história do seu cliente, fica atento à personalidade que a narrou. É dessa maneira que o paciente toma conhecimento das ficções que estão por trás do seu sofrimento. Essa é a forma de o cliente notar uma outra realidade que se confunde com o presente.

            Ao refletirmos sobre a invisibilidade que nos conduz a uma atitude desfavorável ao desenvolvimento, necessitamos de um espaço terapêutico. Um lugar que, como um espelho, permita-nos caminhar pelo mundo das trevas sem tropeçar tanto no mundo da luz. Dessa forma, em lugar de se defender do que imaginamos ser real, caminhamos com a consciência das mentiras que transformamos em verdade.  

            Em um mundo com caminhos ilimitados para a realização de desejos de poder, em detrimento da sorte do outro, torna-se necessário o sacrifício de abandonar tudo isso e seguir trilhas pavimentadas pela responsabilidade ética. Quando essa condição não é atendida, aparecem os sintomas neuróticos como uma tentativa de nos fazer perceber que estamos usando o anel de Giges para tornarmo-nos invisíveis de nós mesmos.

            Os alquimistas lutavam para conseguir transformar a massa confusa, ou algo sem valor, em ouro, um metal valorizado por não se deixar ser corrompido e não ser facilmente encontrado. Essa foi a metáfora aproveitada por Jung para traduzir o que ele chamou de Processo de Individuação.

            O homem sem evolução, ainda tão presente em nossa civilização, usa seus interesses escusos de poder. Daí a condição de atitudes inesperadas daqueles que se utilizam do anel de Giges para esconder suas ações de si e do outro, obtendo o poder para compensar seus sentimentos de desimportância, por exemplo, ao tempo em que um sintoma, um sofrimento, vem ao nosso socorro para que possamos compreender a necessidade de buscar as transformações nesse caminho utópico dos alquimistas, mas que nos fazem melhor do que éramos antes.

             Utilizamos esse estado de consciência alcançado para compartilhar com outros o que vemos ou assistimos, dando a impressão de que há uma concordância sobre algo que dissemos ser objetivo. No entanto, cada um com as suas escalas de valores e nível de evolução, a lutar como quem precisa vencer uma guerra, que parece lhe ocorrer lá fora, mas trata-se da guerra interior. Ela nos faz abandonar o que é do comportamento dos animais, os quais não podem escolher seu modo de ser.

O processo de evolução nos exige um amadurecimento que nos deixe capazes de decidir entre nossos desejos e impulsos de poder. Para isso, precisamos de uma capacidade reflexiva para tornarmo-nos donos de nossas decisões.

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Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br