Que História Você Está Vivendo?

É desconcertante pensar que ao invés de estarmos vivendo nossa história,

                 nossa história pode estar nos vivendo, e ainda pior, talvez tenhamos aceito como genuína a versão da nossa história escrita pelos outros.

(James Hollis)

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  • “Qual é a sua visão de mundo?”

  • “Quanto dela decorre de sua família de origem?”

  • “Quanto dela decorre do espírito da sua época?”

  • “Quanto dela é verdadeiramente genuína, decorrente do sentido fundamental de sua vida e de sua identidade essencial?”

Provocando nossa reflexão sobre esse enfoque, James Hillman nos questiona de forma incisiva:

“Será que conhecemos realmente o que invadiu nossa mente – essas ideias, como móveis que ficam postados silenciosamente no mesmo lugar durante décadas, determinando cada movimento que fazemos nos hábitos interiores dos nossos pensamentos e ações? Se não conhecemos as ideias que temos, são elas que nos têm”.

Nosso mito pessoal seria decorrente de projeções (constelações) de nossos arquétipos, sendo os arquétipos um a priori coletivo subjacente na psique de cada indivíduo, uma matriz psíquica compartilhada que se evidencia através de comportamentos pessoais que expressam as experiências mais básicas e universais da humanidade (Murray Stein). Ou como caracterizado por Jung, arquétipos seriam impulsos primordiais que ativam o comportamento dos indivíduos em relação às suas necessidades psicológicas.

Sendo aspectos de nós mesmos, os arquétipos podem revelar nossos desejos e objetivos mais importantes, sendo que a percepção de sua expressão em nosso mito pessoal nos auxilia a acessar o nosso potencial não realizado, a lógica e a relevância de nossa vida e aumentar nossa empatia para com as histórias de vida dos outros.

O mito pessoal contempla nosso sistema implícito de valores, aquelas autoridades interiores e ideias controladoras que governam nossa vida, quer as conheçamos ou não, as escolhamos ou não. Para James Hollis, nós somos, inevitavelmente, seres mitológicos. As únicas questões são:

“Que mitos e de quem, nossos ou dos outros?”Temos disposição natural a vivenciar histórias cujo script é constituído de mitos pessoais: ficção que contamos repetidamente para nós mesmos sobre quem somos, o que queremos, o que podemos e não podemos fazer. Tendemos a achar que nossa história é verdadeira: Confundimos nosso mito pessoal com a própria realidade. Tornamo-nos prisioneiros de nossa visão de realidade: Interpretamos o mesmo script dia após dia. Dessa forma, prossegue Hollis, o entendimento do enredo de nosso mito pessoal possibilita vivenciarmos nossa História em scripts mais satisfatórios.

Como adiciona Jung, tudo no inconsciente busca manifestar-se externamente, e a personalidade também deseja evoluir de suas condições inconscientes e vivenciar sua condição de completude. O que nós verdadeiramente somos em nossa visão interior somente pode ser expresso por meio do mito, e mais especificamente através do nosso mito pessoal.

A Sina de Hamlet

Na visão de Erich Neumann, embora a maneira “como se faz uma experiência” seja prescrita arquetipicamente, “o QUÊ da experiência” sempre é individual. Hamlet sempre terá que falar as linhas escritas para Hamlet, mas ao contrário de Hamlet, nós temos a oportunidade de, através da consciência, mudar o script de nossa história:

  • “Quem sou eu realmente à parte minha história?”;

  • “Quem sou eu realmente à parte meus papéis?”;

  • “Sob que verdades autônomas (mitológicas) eu estou vivendo a vida, ou melhor, quais questões estão me vivendo?”.

Os fatos da nossa vida são bem menos importantes do que a maneira como nos lembramos deles, o modo como os interiorizamos e somos impulsionados por eles, ou como somos capazes de trabalhar com eles. Ainda nessa perspectiva de Hillman, precisamos rever a distinção entre “nossa história” de eventos externos e “nosso mito pessoal” como histórias de eventos internos.

O mito pessoal traduz-se em modelos através dos quais as pessoas codificam e organizam suas percepções, sentimentos, pensamentos, ações. O mito pessoal atua como lentes que dão cor à percepção de acordo com seus pressupostos e valores, enfatizando certas possibilidades e obscurecendo outras – muito do sofrimento psicológico decorre de mito pessoal não sintonizado com as necessidades reais e o potencial do indivíduo (Feinstein e Krippner).

O mito pessoal estrutura a nossa percepção e nos aponta a direção que se tornará o nosso caminho: se não temos conhecimento dos conteúdos de nossa mitologia pessoal, seremos inconscientemente carregados por ela, resultando em que confundimos o que existe objetivamente no mundo com a imagem do mundo que nos é transmitida por nossas próprias lentes distorcidas (June Singer).

Através do mito pessoal interpretamos a experiência dos nossos sentidos, ordenamos as informações, encontramos inspiração e direção, e nos alinhamos com poderes no universo que estão além do nosso entendimento. O mito pessoal constitui modos de organizar experiências, os quais podem ser mais ou menos eficazes para o bem-estar e o desempenho do indivíduo na vida. Feistein e Krippner nos apresentam a seguinte dinâmica do construto relativo ao mito pessoal:

  • A construção de mitos é o mecanismo psicológico primário para navegação na trilha da vida;

  • O mito pessoal tem um enredo que modela percepções, crenças e atitudes, alimenta emoções, define papel social e nos ajuda encontrar significado e conexão espiritual; e

  • Entendendo nosso mito pessoal, nos tornamos menos vulneráveis às influências da mitologia familiar e da cultura social e podemos atuar de forma mais consciente no seu desenvolvimento.

Inteligência Narrativa

Para o grego homérico, a identidade de alguém é amplamente calcada em termos da história ou histórias de sua vida. Os eventos dos quais o homem participou constituem sua identidade. Se a versão dos eventos é diferente, então a identidade é diferente. Uma vez que os deuses participam dessas histórias, elas são mitos, e a biografia de uma pessoa torna-se sua mitologia. Autoconhecimento é, no pensamento grego posterior, um exame, seleção e escrutínio dessas histórias.

Quando desenvolvemos a inteligência narrativa, conceito elaborado por Carol Pearson, passamos a entender por que agimos da forma que agimos. As pessoas podem reconhecer com o tempo que há uma história que provê o significado fundamental (identidade) e o propósito essencial de suas vidas: o mito pessoal autêntico. Adicionalmente, outras histórias são personificadas em tempos diversos: diferentes estágios da vida nos oferecem novas situações, novos cenários, novos personagens com os quais temos que atuar. Muitas pessoas vivenciam como sonâmbulos histórias que emergem naturalmente e meramente vegetam numa vida sem sentido e sem propósito.

Complementando uma perspectiva anteriormente introduzida, embora os nossos personagens sejam universais, nós os expressamos de forma própria: a compreensão do nosso script nos oferece um processo de individuação consciente. Em outras palavras, o entendimento de nossa estrutura arquetípica nos mostra o potencial de plenitude das histórias que vivemos ou poderíamos viver, viabilizando-nos vivenciar a vida que é a mais verdadeira e autenticamente nossa.

Ressaltando que as pessoas podem levar vidas inautênticas, fazendo só o que os outros esperam delas, Karen Armstrong nos alerta que os grandes mitos mostram que quem segue rumo alheio acaba se perdendo, devendo o herói partir sozinho, aventurando-se na escuridão do desconhecido, combatendo seus próprios monstros e sofrendo sua própria provação para poder encontrar o que lhe falta. Ao contrário, se o herói percorre uma rota já estabelecida, estará apenas seguindo pegadas alheias e não viverá uma aventura. Se este quiser triunfar, terá de entrar na floresta.

Ao ratificar de forma metaforicamente literária essa perspectiva anterior, Marc Gafni nos conscientiza de que a questão fundamental da vida é se seremos os heróis da nossa história – ou, tragicamente, personagens secundários no nosso próprio drama. Esse rabino nos lembra que o que determina a grandeza de uma obra literária não é o fato de seu protagonista ter tido êxito ou fracassado – a preocupação principal seria se o escritor foi ou não bem-sucedido:

  • “Ele expressou profundamente a paixão da história,deu profundidade ao herói?”

Mito Morto e Vida Simbólica

Num nível pessoal, todos nos dependuramos em imagens de nós mesmos, em imagens de uma outra era, em imagens transmitidas pela cultura, ou pelos pais, em imagens obsoletas, irrelevantes, constritivas. Nos empenhamos muito para construir um conceito adaptacional de si-mesmo, com uma história, um conjunto de atitudes perante si e os outros, e uma série de respostas reflexas cujo propósito é reduzir nossa angústia existencial.

Uma grande parte desse eu reunido deriva de experiências da infância reforçadas pelo condicionamento cultural. O Si-Mesmo natural é enterrado sob esse Si-Mesmo adquirido, do que resulta a sensação do estranhamento íntimo e variados sintomas de mal-estar ao estarmos agarrados a um mito morto. Tal situação nos faz recordar a sagaz assertiva de Joseph Campbell ao colocar:

  • “Onde há trilha são as pegadas de outros… Ninguém pode lhe dar uma mitologia”.

Circunscrita como está dentro de uma falsa imago, a alma sofre. Nesse contexto, Hollis ratifica que talvez não saibamos por que sentimos tanta aflição, mas sofremos, e frequentemente causamos sofrimento aos outros. A alma não se sente mais em casa com o velho sistema simbólico que pensamos ser nossa personalidade, nosso centro emocional. Jung complementa, salientando que o significado advém só quando as pessoas sentem que estão vivendo a vida simbólica, que são os atores do drama divino – Isso é o que confere à vida humana seu único significado.

Aqui nos cabe incluir a intimação filosófica destes três grandes pensadores antigos:

  • “Todo ser humano é de duplo caráter:Há aquele totalmente comprometido e há o homem autêntico” (Plotino – séc. III)

  • “Há o ser possível e o ser necessário” (Avicena – séc. XI)

  • “A essência é uma potência de ser e o ato de ser é uma contingência”(Tomás de Aquino – séc. XIII)

Conclusão

Ser sujeito, na versão de Edgar Morin, é colocar-se no centro de seu próprio mundo, é ocupar o lugar do “eu”. O fato de poder dizer “eu”, de ser sujeito, significa ocupar um lugar, uma posição onde a gente se põe no centro de seu mundo para poder lidar com ele e lidar consigo mesmo. De outra forma, iremos cair na armadilha de que nos previne William Blake:

  • “Ou criamos nossos mitos ou seremos escravizados pelos mitos de outrem”.

Caso o apóstolo Paulo achasse que não passava de um tecelão de tapetes certamente não teria se tornado ele mesmo – sua vida adquiriu significado com a certeza de que era mensageiro do Senhor através da epifania a que foi submetido no caminho para Damasco: o seu mito pessoal tornou-o maior do que um mero artesão, transformando-o em um dos principais esteios da religião cristã.

No sentido oposto, finalizamos com a pérola poético-filosófica de Fernando Pessoa:

  • “De tal modo me converti na ficção de mim mesmo que só disfarçado é que sou eu”.

E no seu caso: “QUE HISTÓRIA VOCÊ ESTÁ VIVENDO?”

Referências Bibliográficas

1) JUNG, Carl. Memórias, sonhos e reflexões.

2) _______. A vida simbólica.

3) PEARSON, Carol. O despertar do deus interior.

4) ______. What story are you living?

5) STEIN, Murray. Jung – o mapa da alma.

6) NEUMANN, Erich. História da origem da consciência.

7) HOLLIS, James. Rastreando os deuses.

8) ______. Encarnações do mundo visível.

9) ______. What matters most.

10 MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo.

11) HILLMAN, James. Ficções que curam.

12) ______. O código do ser.

13) FEISTEIN, David; KRIPPNER, Stanley. Personal mythology.

14) SINGER, June. Boundaries of the soul.

15) ARMSTRONG, Karen. A escada espiral.

16) GAFNI, Marc. As marcas da alma.

ABSOLON MACEDO – Engenheiro, Especialista e Mestre em Administração, com Extensão em Gestão pela University of Waterloo/Canadá; Pós-graduações em Psicologia Geral e Analítica das Organizações, em Filosofia Contemporânea e em Sociologia do Trabalho e da Saúde Mental; Formação em Psicologia do Comportamento Social no CAPT-OKA/EUA, com Treinamento nos Institutos Junguianos de New York, Washington, Texas, Florida e Cleveland/EUA, e aperfeiçoamento no Jung Institut Zurich/Suíça; Qualificação e Certificação para aplicação do MBTI – Tipos Psicológicos (Steps 1, 2 e 3) e do PMAI (Estrutura Arquetípica) pelo CAPT/EUA, e do EQ-2.0/EQ – 360 (Inteligência Emocional) pelo MHS/EUA; Consultor e Professor de Pós-Graduação de Filosofia do Comportamento Humano e de Liderança e Comportamento Organizacional.