Sempre que me proponho estudar sobre este tema, tenho isto em mente: “[…] toda relação é uma aposta que ninguém tem certeza se irá ganhar, porque é uma aposta que depende da liberdade do outro.” (PAZ, 1985).
Este é um assunto tão presente, no cotidiano da minha prática clínica, que pretendo examiná-lo a partir do meu referencial teórico. Às vezes, numa relação, percebemos, nos parceiros, a “sede de ser outro”, onde o sobrenatural é o radical e supremo “ser-se outro” ou, até mesmo, que sentem a relação como um feitiço, uma atração que une os amantes, através do encantamento, ou, ainda, que se expressam desta forma: “O amor é um desejo de formosura: é uma ânsia de completude”. Ora, nessas maneiras de ver, sentir e viver, podemos notar que as relações podem ser permeadas de idealizações e embasadas nas projeções, tema bastante discutido por Jung (1948), no seu arcabouço teórico; quando se refere às relações (anima/animus), ele afirma: “[…] só se pode conhecer a realidade da sombra em face de um outro, e a do animus e da anima mediante a relação com o sexo oposto, porque só nesta relação à projeção se torna eficaz.”
Jung (1948) considera anima e animus como complexos autônomos, os quais constituem uma função psicológica do homem e da mulher, respectivamente. Sua autonomia e falta de desenvolvimento usurpam, ou melhor, retêm o pleno desabrochar de uma personalidade, pois, na medida em que a ambos (anima/animus) forem inconscientes, sempre serão projetados, uma vez que todo o inconsciente é projetado, de sorte que, conforme afirma, ninguém compreenderá esses fatos, se não experimentá-los em si mesmo.
Logo, o animus personifica o elemento masculino, na mulher. E a anima personifica o elemento feminino, no homem, condensando todas as experiências que a mulher e o homem vivenciaram ou sentiram, nos seus encontros com os homens e mulheres, no curso dos milênios. É a partir desse imenso material inconsciente que é modelada a imagem do homem, que a mulher procura, e da mulher, que o homem procura (SILVEIRA, 1981, p. 97).
É justamente com a retirada dessas projeções que muito comumente acontece o rompimento dos laços amorosos, pois o outro reflete aquilo que somos. Podemos conviver com nossos parceiros, sem nos darmos conta disso, anos a fim; contudo, a decepção, a traição, o ciúme e até mesmo comentários como este: “Não foi com esta pessoa que me casei”, vêm corroborar tais ideias, além de constituir-se em um chamado para rever as relações estabelecidas com os outros e consigo mesmo.
Vale ressaltar que a projeção é um mecanismo psíquico o qual ocorre sempre que um aspecto vital de nossa personalidade que desconhecemos é ativado. Quando algo é projetado, vemo-lo fora de nós, como se fizesse parte de outra pessoa e nada tivesse a ver conosco. A projeção é um mecanismo inconsciente. Não somos nós que decidimos projetar algo, isso acontece automaticamente. Só são projetados conteúdos inconscientes; no momento em que uma coisa se torna consciente, cessa a projeção.
Enfatiza Sanford (2002) que, quando, numa relação, a mulher oculta seus verdadeiros sentimentos, é o animus quem toma a iniciativa de pedir contas ou de se vingar. Usando a espada de uma lógica aparente, ele lançará mão de algum argumento que tenha pouco ou nada a ver com a real saída emocional. Irritado e frustrado, o parceiro, pela injustiça deste, possivelmente cairá nas malhas de sua anima e, a partir daí, poderão acontecer coisas desagradáveis.
Contudo, o que realmente mais faz o homem perder a calma é o tom abafado de censura queixosa das mulheres, embora os homens que conhecem um pouco mais sobre esse assunto saibam que oitenta por cento da possessão do animus constitui um apelo disfarçado de amor (SANFORD, 2002).
Reconhecer a realidade de tais figuras interiores e prosseguir na direção apontada por elas mostra que a pessoa está no caminho de um novo desenvolvimento. Nos relacionamentos humanos, a tragédia muitas vezes se dá em decorrência da falta de reconhecimento de um dos parceiros, por não conseguir respeitar o processo anímico do outro. Quando um dos dois é invadido pelo outro, seja no corpo, seja na alma, sente-se estuprado: o seu mundo interno pode ficar devastado (SILVEIRA, 1981).
Conforme Silveira (1981) relata, as relações entre homem e mulher ocorrem dentro do tecido fantasmagórico produzido pela anima e pelo animus. Portanto, não é de se surpreender que surjam emaranhados de problemas, na vida dos casais, e que suas personificações possam ser vistas nos sonhos, contos de fadas, mitos e outras produções inconscientes, variando em uma escala larguíssima, em forma de animais selvagens, demônios, príncipes, criminosos, heróis, feiticeiros, artistas, homens brutos e requintados.
Num relacionamento maduro, é preciso separar-se do outro interiormente, para agir vagarosamente, a partir do seu próprio centro. Isso, muitas vezes, é uma coisa dura de fazer, pois queremos mergulhar juntos em um estado de “amor” extático.
Todavia, segundo Leonard (2003), nós, amantes humanos, temos de nos fundar no grande amor transcendente de compaixão. Casar-se significa juntar, unir dois seres diferentes, numa busca sagrada de sentido em suas vidas. Todas as núpcias de alma nos levam à presença do Ser, do fundamento da alma. São as núpcias de alma, as núpcias interiores, o casamento régio e divino, que constituem para Jung símbolo espiritual da culminância do processo de individuação.
Assim, a união divina, o casamento místico, segundo Jung, corresponde a uma imagem a priori, um arquétipo do próprio coração de nossa existência humana. Essa visão inspira a viagem sagrada da alma para o divino. Ainda que, na maioria das vezes, primeiro projetemos as núpcias divinas como um mistério a ser encontrado fora de nós, constatamos finalmente que a dança das núpcias divinas é concretizada pelas núpcias interiores e, por fim, percebemos que não se pode ter amor no amante, mas se poderia encontrar, juntos, o amor um com o outro.
Ademais, no relacionamento, o inverno do nosso ser é aquele tempo de espaço silente de fidelidade e lealdade, em que se recolhe miraculosamente no escuro o novo Ser, para voltar a aparecer e surpreender-nos mais uma vez, na primavera, quando o. anel cíclico inteiro inicia de novo a sua dança.
É importante, para a meta da individuação, isto é, para a realização do si-mesmo, que o indivíduo aprenda a distinguir entre o que parece ser para si mesmo e o que é, para os outros. É igualmente necessário que conscientize seu invisível sistema de relações com o inconsciente, ou seja, com animus/anima, a fim de poder diferenciar-se dele (JUNG, 2000).
O casamento interior significa uma união com o amante interior, com o homem de coração que tão frequentemente surge em nossos sonhos. Muitas mulheres procuram o homem que atenda ao seu ideal, numa queixa contínua, que muitas vezes oculta uma imagem interior do amante tão idealizada, a que nenhum ser humano seria capaz de corresponder.
Essa núpcia significa mudança: muitas de nós não queremos correr o risco. Todas nós temos medo da morte, de deixar morrer o velho modelo, para que possa nascer um relacionamento novo e criativo. E o maior desafio é a morte! A morte das velhas identidades extáticas, a fim de que o novo Ser possa emergir.
A solidão pode ser uma companheira, nesses momentos de renovação – às vezes nos desesperamos, embora ela tenha um efeito de aprendizado, mas é um tempo isolado e solitário para a preparação do amor.
Casar-se é morrer em prol do Outro, é renunciar a desejos, fantasias, ilusões e obsessões do próprio ego, de sorte a respeitar o mistério maior do relacionamento. Isso exige uma transformação pessoal; é realizar o casamento dentro de nós mesmos – por vezes, confundimos com a cerimônia exterior, através das vivências amorosas; ter um relacionamento pleno e saudável com outra pessoa exige que sejamos plenas e saudáveis.
Os obstáculos são reconhecidos, em decorrência na nossa cultura, de como fomos educados, das nossas crenças familiares e até mesmo das religiosas. Contudo, devemos nos voltar para dentro e perceber como foram introjetadas em nós, para, assim, podermos ter o poder de mudá-las. É o mistério do crescimento, a maneira própria, única, de sermos a partir de dentro, sem nos deixarmos contaminar por uma vida cheia de assuntos triviais e banais e perder o mistério da nossa identidade única, o mistério do Outro e do Cosmos. Se esquecermos de adentrar a nós mesmos, esqueceremos que o sofrer é fonte de criatividade e que a vida é um trabalho de amor e esforço criativo.
Algumas de nós, por vezes, ficamos paralisadas diante do nosso caminho para o casamento interno, quando experimentamos em nós mesmas um lado infantil de menina. Na verdade, isso poderá nos manter enfeitiçadas, em estado de melancolia ou de crença no que se acreditávamos ser verdade. Como se enfeitiçadas estivessem as energias criativas, num estado de indecisão e incapacidade de compromisso com a vida, com o relacionamento e com a nossa alma.
Para tanto, é preciso coragem de nos abrirmos e mudar nossas mentes, quando deparamos com esses fenômenos, ativando nossa persistência em transcrever e estudar, em busca de nova consciência.
Haverá possibilidade de um casamento autêntico, em sintonia com as dimensões da nossa existência humana, ao percebermos a nossa limitada condição humana e compreendermos os conflitos universais que compartilhamos, de forma única e própria, de modo a nos sentirmos capazes de valorizar o mistério único e singular como seres humanos, podendo dialogar com o mistério do Outro.
Cita o poeta Rilke:
“Amar também é bom, mas o amor é difícil. O amor mútuo entre os seres humanos talvez seja a mais difícil de todas as tarefas que se nos impõe, a prova final e derradeira, o trabalho para o qual todo outro trabalho não passa de preparação.”
Daí a importância dos relacionamentos, no decorrer de nossas vidas; todos os parceiros com os quais nos relacionamos nos permitiram experimentar aspectos de nossa personalidade, mediante as vivências com os homens, propiciando conhecer facetas diferentes, a emergir em cada relacionamento. Logo, esses parceiros contribuem de forma singular para o nosso processo de individuação.
E é nesse encontro apaixonante que reside o desejo de plenitude, de necessidade profunda que cada um de nós tem de integrar em nós mesmos o que o outro representa – em busca do êxtase da totalidade, o desejo que nossa alma tem de unir-se à consciência e forjar uma personalidade indivisível e criativa.
Essa plenitude corresponde à imagem chamada por Jung de coniunction, da união dos opostos, da junção entre macho e fêmea, o que equivale à imagem da junção do consciente com o inconsciente da personalidade, pois os opostos só se podem unir dentro de uma personalidade individual – assim, a união dos aspectos femininos e masculinos é que constitui um ser humano completo, num encontro dentro de nós mesmos, num casamento nupcial que se realiza em nosso inconsciente.
Socorro do Prado
Psicóloga com Pós-Graduação em Psicoterapia Analítica Junguiana pelo IJBA, Licenciada em Letras Vernáculas pela UCSAL e Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP.