“Fui eu que o fiz”, diz a minha memória.
“Não posso ter feito isso”,
– diz o meu orgulho e mantém-se inflexível.
Por fim – é a memória que cede.1
Friedrich Nietzsche
Se você é um executivo, chefe de engenharia, design ou qualquer outro funcionário de alto escalão de uma grande empresa que empregue tecnologia de ponta (como Apple, Tesla ou Google), certamente terá que assinar um contrato de não-divulgação de dados confidenciais da sua empresa (NDA, do inglês “non-disclosure agreement”). Isso é necessário para proteger a propriedade intelectual dos softwares e produtos que ela produz e patenteia, criações das quais dependem a sobrevivência da empresa num cenário de constante inovação e alta competitividade. A divulgação de informações corporativas protegidas por esse tipo de contrato é levada a sério em países como os Estados Unidos, estando os indivíduos que o fazem sujeitos a severas punições legais. Funcionários de agências governamentais que lidam com dados extremamente sensíveis pertinentes às funções do governo e à segurança pública (membros do judiciário, Polícia Federal, agências de inteligência, etc.) também estão sujeitos às mesmas restrições.
Agora imagine o seguinte cenário: uma empresa cria um método revolucionário que garante que alguém jamais poderá violar a confidencialidade exigida no seu serviço, mesmo que deseje e tente fazê-lo. Isso é tornado possível através de uma intervenção cirúrgica no cérebro que divide a personalidade em duas: o Eu da vida normal, com todas as suas vivências e memórias inalteradas e o “Eu-funcionário”, que só está consciente enquanto permanece no escritório. O “Eu-externo” é a personalidade normal do indivíduo; o “Eu-interno” não tem qualquer memória de sua vida prévia – ele “nasce” assim que o procedimento neurológico é realizado. Quando o indivíduo ultrapassa um determinado limiar físico dentro das instalações da empresa, o Interno é “desligado” (fica inconsciente) e o Externo “acorda”, com todas as suas memórias e personalidade habituais, exceto aquilo que foi feito e vivido no local de trabalho, de modo que é impossível violar o sigilo profissional.
Esta curiosa premissa é o que dá à série “Ruptura” (“Severance”, Apple TV+, 2022) seu toque de inusitado e misterioso. Por que alguém se submeteria a um procedimento tão radical apenas para trabalhar numa corporação? Quais poderiam ser as implicações dramáticas dessa ideia? As motivações humanas e consequências deste processo “hipotético” (explico as aspas adiante) me surpreenderam por sua profundidade e poder de metáfora que dialoga com várias disciplinas, como neurociência, psicologia, antropologia e filosofia. Se quiser embarcar nesta jornada, no entanto, esteja avisado(a): revelarei a seguir detalhes que um potencial espectador possa considerar vitais para a experiência da narrativa (os famosos spoilers); talvez você queira assistir a série antes de ler os parágrafos seguintes. Para os que decidirem continuar, ler este texto talvez te faça entender melhor o que ali ocorre, e até ir mais a fundo nas implicações que a série traz.
“Ruptura” começa com a chegada de uma nova funcionária chamada “Helly” (Britt Lower) aos escritórios das Indústrias Lumon. Ela aparece desacordada e ganha consciência sem ter a menor idéia de quem seja ou onde está. Por causa disso, deve passar por uma orientação e testes psicológicos para se aclimatar ao novo ambiente de trabalho, o que ocorre – como seria de se esperar – terrivelmente mal. O que você faria se acordasse sobre uma mesa num local desconhecido e tivesse que responder a perguntas sem pé nem cabeça, sem que ninguém te explicasse o que estava acontecendo?
Helly fica agitada, agressiva, exige sair daquele lugar. Como percebeu em seus anos de médico residente de um hospital psiquiátrico, Jung afirma que o comportamento violento como reação à perspectiva do confinamento é algo completamente natural, até mesmo os animais reagem desta forma2. A reação negativa – ora violenta, ora depressiva – diante da privação da liberdade é muito mais uma característica da sanidade mental do que da loucura ou da demência. Mark (Adam Scott), supervisor de Helly e responsável por sua “orientação profissional”, oferece-lhe a opção de ir embora e apresenta a novata à porta de saída. Mas algo não parece certo, seria a saída fácil parte da orientação, um truque, uma falsa saída?
Helly não pensa duas vezes: arremete-se para a porta e retorna por ela logo em seguida. Repete a tentativa algumas vezes, com o mesmo resultado, até desistir. Mas um detalhe é crucial: ela não tem qualquer consciência de haver saído do recinto. A saída do ambiente é vivida como se ela estivesse abrindo a porta que dava para o exato corredor de onde ela havia saído! Dando as costas para Mark, ela abria a porta, e quando olhava através dela, lá estava Mark no mesmo corredor, aguardando-lhe. Aqui mora um dos lances mais geniais que já vi numa obra de ficção das últimas décadas, no entanto só podemos compreender o que aconteceu vários episódios depois.
Quando Helly atravessa a porta, ela ultrapassa o limite onde o que vou chamar de “troca de Eu” ocorre: a personalidade Interna desaparece, e reaparece (do outro lado da porta, fora do escritório) a Externa, que optou por passar pelo processo de Ruptura e trabalhar nestas condições. Ao optar por narrar os dois momentos em episódios distintos, a série favorece a manutenção de uma continuidade psicológica – assim como as personalidades parciais a percebem – em vez de adotar a perspectiva cronológica absoluta de um observador externo. Em vez termos saciada imediatamente nossa sede de explicações, somos convidados a compartilhar da inquietante confusão e monotonia vivenciados pelas personagens.
No episódio que complementa esta cena, estamos agora na perspectiva da Helly-Externa: após ser anestesiada para realizar o processo de Ruptura, ela subitamente retoma a consciência na parte de fora de um corredor, sendo confrontada por um dos supervisores, que a informa que seu eu Interno decidiu sair da empresa. Ela imediatamente retorna pela porta da do corredor e o efeito de “continuidade mágica” aqui aparece de forma invertida: ela abre a porta e novamente está fora do corredor, encarando o mesmo funcionário que o explica que ela continua tentando sair. Ela mantém a decisão de retornar quantas vezes forem necessárias até que sua contraparte interna desista de sair por aquela porta.
Dentro da Lumon, Helly está compreensivelmente confusa. Ela não faz ideia do que acontece por não ter acesso às decisões da sua contraparte externa. Ela confronta Mark, que confirma seus medos: no fim do expediente, todos descem de elevador e perdem a consciência, recobrando-a no dia seguinte, quando seu corpo volta ao trabalho. Na perspectiva dos Internos, o elevador desce e sobe novamente sem que nenhuma perda de tempo seja sentida. Começa-se um novo dia de trabalho sem que se tenha a consciência de haver saído, comido, bebido, dormido e voltado ao trabalho. Tampouco sabe-se se é dia ou noite. O Interno está condenado a uma vida que acontece exclusivamente dentro dos estreitos limites de escritórios típicos da metade do século passado, sem qualquer janela para o mundo exterior, o que exacerba o sentimento enlouquecedor de claustrofobia criado pelo confinamento.
Ao prosseguirmos na série, descobrimos algumas das motivações para a adoção do procedimento de Ruptura: Mark decide dividir sua consciência em duas porque, enquanto ele estiver trabalhando, não lembrará que sua esposa morreu. Talvez esta seja a única forma dele conseguir trabalhar e ganhar seu sustento, abafando a dor da perda que o atormenta todo o tempo. Helly é uma das executivas da Lumon, que decide experimentar em si mesma o processo que sua empresa vende para passar ao público uma imagem de segurança.
“Severance” é um termo da língua inglesa que denota um corte agudo em algo, seja um fim de relacionamento, uma demissão ou uma amputação de parte do corpo. A série exprime em seu título e conteúdo um fato conhecido da Psicologia Analítica: ao decidir amputar de sua consciência uma parte indesejável de suas vivências, o indivíduo vítima do sofrimento emocional cria um duplo de si mesmo que é condenado a viver apenas esta dor, em tempo integral. Nada na psique é destruído: é possível reprimir, ocultar nossas vivências traumáticas e feridas psíquicas, mas nunca destruí-las. O eu ferido continua vivo dentro de nós, uma parte da personalidade que fica paralisada em sua vivência dolorosa, sem ter a oportunidade de acessar a consciência e desenvolver-se além daquele ponto. Se sofremos um trauma na infância, enquanto não lidarmos com o que foi reprimido, parte de nós é ainda aquela criança ferida, com sentimentos negativos e traços de comportamento que não têm mais qualquer motivo de existir na vida adulta, mas no entanto permanecem lá. No “lado de fora” (o Eu consciente), vivemos anestesiados, mas incompletos, com o surdo pressentimento de que algo terrível está prestes a acontecer (o retorno da dor que foi reprimida). Algo importante – e desconhecido – está sempre nos faltando.
Este fato é facilmente observável na esquizofrenia. Em sua experiência como psiquiatra, Jung percebeu que toda psicose precisava de um gatilho comportamental específico para se instalar na psique do indivíduo: um conflito de natureza moral aparentemente insolúvel, que gerava uma quantidade insuportável de sofrimento3. A loucura seria então não a doença, mas o mecanismo de defesa para aquele que vivencia os conflitos da vida de maneira demasiadamente intensa. Assim como numa doença autoimune, onde a defesa imunológica do organismo é tão exagerada que acaba atacando o próprio corpo do indivíduo, os mecanismos defesa psicológica acabam causando danos severos à personalidade (psicose) a fim de poupá-la de vivenciar a dor. Assim como Mark cria um Eu-Interno apático para fugir da dor, o esquizofrênico seria o que resta de uma personalidade que amputou de si tudo o que era relacionado a seu conflito mais doloroso.
A esquizofrenia foi descrita por Jung como uma fratura na psique que é impossível reparar. No entanto, nenhum conteúdo psíquico é completamente isolado dos demais; é sempre possível acessar vivências reprimidas por caminhos diferentes daqueles que foram interditados. Nas esquizofrenias mais graves, Jung via a psique do indivíduo romper desesperadamente todo novo caminho de unificação da personalidade. O indivíduo que foge desesperadamente de si mesmo torna-se cada vez mais paranóico; afinal, a verdade que o persegue está sempre por perto. Os “pedaços” amputados de sua personalidade, sempre tentando retornar à consciência, transformam-se nas vozes alucinatórias que escuta, nos vultos que enxerga; alguém (que ninguém mais pode perceber) sempre está perseguindo-lhe. Quando o mecanismo de defesa/ruptura age, ele suspeita que alguém esteja roubando seus pensamentos; quando as partes banidas da consciência tentam retornar, ele sente que alguém tenta incutir-lhe pensamentos alheios a si. A cada nova ruptura, menos da personalidade original subsiste na consciência, mais o indivíduo se aproxima da catatonia, mais ele torna-se raso e repetitivo, estereotípico. A esquizofrenia é o sacrifício do todo para a sobrevivência de ao menos uma parte da personalidade.
Desconfortavelmente rasos, repetitivos, estereotípicos: assim são os Internos de Ruptura, apenas sombras pálidas do Eu-externo. Mark sacrifica a sua personalidade total por não conseguir lidar com seu luto. Irving (John Tuturro) é um caxias que defende os “valores” da empresa como se fossem a tábua dos dez mandamentos. Dylan (Zach Cherry) é obcecado pela performance empresarial, coleciona como se fossem sua maior riqueza os “prêmios” insignificantes (armadilhas de dedo chinesas, caricaturas emolduradas, etc.) que ganha ao bater as metas semanais.
O mecanismo da Ruptura é apresentado a princípio como uma solução incompreensivelmente radical para um problema limitado ao nicho empresarial. Porém, o que se insinua nas entrelinhas da primeira temporada é que a Lumon não passa de uma fachada para um laboratório cujos funcionários são as cobaias, testando um produto com um enorme potencial comercial: para os que tiverem coragem e dinheiro o bastante, amputar uma parte dolorosa de sua personalidade, ligada talvez a um relacionamento tóxico ou a uma perda terrível acaba sendo uma possibilidade atraente. O próprio conceito da série foi inspirado num filme de 2004, “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, estrelado por Jim Carrey e Kate Winslet, cujas personagens submetiam-se a um procedimento que eliminava da consciência as memórias do seu relacionamento doloroso. Popularizada, a Ruptura poderia tornar-se um produto que promete uma saída fácil para diversas situações bastante desagradáveis e de difícil manejo. Outro exemplo disso é mostrado na série: uma mulher decide submeter-se à Ruptura para separar-se da vivência dos partos sempre que dá a luz, porque não deseja sentir dor. Ela passa os momentos finais da gravidez e o parto em um ambiente onde apenas sua personalidade de parturiente está consciente, saindo de lá depois que a criança nasceu. Na perspectiva de sua personalidade habitual, ela dirige-se a um determinado local no fim do termo gestacional e subitamente “ressurge” de lá com a criança em seu colo, sem qualquer memória dos sofrimentos do parto. O mesmo poderia ser feito com soldados, que poderiam voltar à sua vida normal sem qualquer lembrança dos horrores vividos na guerra.
Ruptura é uma metáfora para aquilo que o etnólogo francês René Girard denominava de “mecanismo vitimário” ou “sacrificial”4, operação psicológica que atua como uma receita mágica para lidarmos com todos os problemas da vida. Sua primeira aplicação originou a cultura e está no cerne de todas as instituições sociais (religião, esportes, festas, teatro, etc): o sacrifício de uma vítima expiatória para apaziguar o furor dos deuses que ameaçavam destruir a comunidade com guerras, pragas ou catástrofes naturais. Desde então, estamos eternamente em busca de um bode expiatório para sacrificar ou banir da nossa vida: se na Idade Média todos os males vinham do demônio (que estava em tudo que ameaçava a soberania do Catolicismo), atualmente se culpa as religiões pelos males da humanidade, guerras e neuroses. Antes a praga do mundo era o Imperialismo, o Feudalismo; hoje é o Capitalismo que devemos destruir para atingirmos a terra prometida. Para outros, o Estado é a fonte dos males: é dele que devemos nos livrar. Quem deseja prosperidade, dinheiro, sucesso, encontra sem esforço um guru digital que ensina que você precisa apenas livrar-se da mentalidade (mindset) do fracassado: assim que se passa a pensar como um milionário, se tornará um deles. Quem deseja emagrecer favorece especialistas que elegem um bode expiatório para a obesidade: para um o vilão são os carboidratos, para outro são as gorduras, e assim por diante. Nas instituições de saúde, a maior parte dos pacientes está em busca de uma doença para expulsar; a catarse nada mais é que a evacuação do κάθαρμα (grego, “katharma”, impureza que precisa ser jogada fora), termo que originou a denominação dos medicamentos catárticos ou purgantes, que eliminam as impurezas através da diarréia.
A realidade infelizmente é mais complexa do que o mecanismo vitimário nos faz crer. Para a humanidade primeva, o que ameaçava destruir a humanidade eram deuses ou demônios, mas a violência que precisava ser expulsa para que a paz retornasse era fruto da própria natureza humana. Independentemente do modo de produção, de governo, da religião ou da falta dela, as doenças da sociedade – assim como as do corpo e da alma individuais – são o produto de uma série de escolhas humanas, que acumulam-se com o tempo. Os avanços da medicina confirmam o que teria dito o velho Hipócrates há milhares de anos: “antes de curar alguém, primeiro pergunte à pessoa se ela está disposta a abrir mão das coisas que a fizeram adoecer”. Não basta um vírus, bactéria, parasita ou falha genética para produzir a maioria das doenças, mas também – e principalmente – os maus hábitos que permeiam toda a vida do indivíduo. Na prática, parece mais fácil acreditar na promessa de avanços tecnológicos revolucionários, desde que estes nos permitam continuar buscando um bode expiatório que, expulso do nosso corpo, faça retornar a saúde perdida.
Ruptura fala da impossibilidade de livrar-nos do mal (mal-estar, mau-caráter, má lembrança, etc.) através da negação (a amputação psíquica), da projeção no outro, da eleição de um bode expiatório para nossos infortúnios. O mal está em nós e é raramente possível nos livrarmos dele num passe de mágica, com rituais, injeções ou cirurgias. Especialmente no nosso tempo, onde as redes sociais nutrem a cultura da perfeição, lembremos que só há perfeição na incompletude: por trás de uma aparência impecável, de um desempenho imbatível, há uma enorme parte da vida negligenciada, sacrificada. Se desejamos atingir a saúde, o bem-estar, é necessário um esforço que envolva a personalidade como um todo, que aceitemos o quinhão que nos cabe de responsabilidade sobre nosso infortúnio e abracemos o longo esforço de reintegração daquilo que foi deixado para trás.
Paulo Nunes – Médico graduado na UFBA em 2005. Psicoterapeuta Junguiano pós-graduado no IJBA. Contato: (71) 98355-6564 (Telefone e Whatsapp). Instagram.com/jungexplica
Referências: