Santo Expedito e o Espírito Mercurial: sofrimento, sacrifício e redenção

Conta a tradição católica que Expedito de Melitene fora um militar romano do século IV, martirizado na Armênia após converter-se ao Cristianismo. Pouco se sabe sobre ele e as diversas versões da sua biografia lançam dúvidas sobre sua existência histórica. O religioso inglês Alban Butler especula que seu culto tenha começado após a descoberta de uma caixa de relíquias de um santo desconhecido, na qual estaria inscrito o nome spedito, que em italiano significa “enviado” ou “rápido”. A inscrição poderia indicar simplesmente a urgência requerida para o envio da caixa; no entanto, freiras a teriam interpretado como se fosse o nome do santo e passaram a divulgar sua devoção, latinizando o nome para Expeditus (BUTLER, 2010).

A imagem comumente associada ao santo ilustra a narrativa de sua conversão: ao decidir converter-se, um demônio em forma de corvo teria aparecido, gritando “cras! cras! cras!” (onomatopéia típica do grasnado do corvo, mas também a palavra latina para “amanhã”). Pisando o corvo, ele disse: “hodie” (“hoje”, em latim), deixando claro que não adiaria a sua conversão um dia sequer. Na interpretação popular deste símbolo, Expedito é aquele que esmaga a sombra do amanhã tenebroso (cras), e ergue uma cruz branca, a solução mágica e sagrada das necessidades mais imediatas (hodie).

Nos estudos de Jung (2011m) sobre a filosofia medieval, a imagem do corvo aparece frequentemente associada à fase da Nigredo ou negrume, estado inicial e impuro da matéria que será transformada pelo processo alquímico. Após uma série prolongada de operações químicas no laboratório (separação, solução, destilação, coagulação etc.), seria possível atingir o estágio seguinte, a Albedo ou brancura, obtendo-se a matéria prima da obra alquímica em seu estado de pureza. Entre incontáveis denominações, esta substância era conhecida como “água viva”, “umidade branca”, “homúnculo” ou “mercúrio filosófico” (JUNG, 2011e), estando associada à cura de todas as moléstias e à iluminação espiritual.

 Psicologicamente, nigredo é o estado subdesenvolvido e inconsciente em que se encontra uma das nossas funções psíquicas, aspecto de nossa personalidade que se torna responsável por uma inadequação à vida adulta, característica típica da neurose. Passamos boa parte de nossa existência inconscientes do nosso “outro eu” inferior (ou Sombra), mas no momento em que ele passa a contaminar nossa vida consciente e forçar sobre o Eu a realização dos seus desejos, somos obrigados a aceitar como parte de nossa própria personalidade características negativas que desprezamos em outros – e assim entramos na Nigredo.

Nesta fase é comum a falta de energia psíquica (ou libido) na consciência: o indivíduo sente-se cansado, deprimido, sem disposição suficiente para realizar até as tarefas ordinárias. Não consegue seguir vivendo do mesmo modo, pois já não obtém a satisfação de outrora na carreira, nos relacionamentos etc. É este o estado de muitos que buscam terapia, impasse geralmente provocado por um grave conflito entre disposições opostas, aparentemente insolúvel.

Na imagem do santo Católico estes opostos estão representados no corvo e na cruz. Na mão direita, a cruz, branca, apresenta as qualidades relacionadas à consciência: brancura ou luz, no alto, perto da cabeça humana. Ela simboliza o Eu consciente: competente, maduro, moralmente correto e adaptado ao mundo externo, é elevado ao alto, exibido publicamente como o que de melhor há em nós. O corvo, por sua vez, aparece na imagem com qualidades associadas ao inconsciente: no chão, animal, escuro, aparentado à morte e putrefação (os corvos podem ser necrófagos). Representa o Outro inconsciente: reprimido (imóvel sob os pés do santo) por ser infantil ou imoral, demanda de forma egoísta a pura satisfação dos seus instintos, como um pequeno diabo que nos seduz para que deixemos para amanhã (cras!) as consequências dos nossos atos e cedamos à tentação do momento.

Entre o corvo e a cruz está Expedito. O Santo das causas urgentes é o intermediário entre ambos, síntese dos opostos previamente inconciliáveis que na psicologia analítica recebe o nome de função transcendente (JUNG, 2013t). Sob este aspecto, o santo pode ser visto como um equivalente do deus grego Hermes. Conhecido pelos alquimistas como o equivalente romano Mercurius, Hermes é um mensageiro veloz, deus das estradas e viagens, cujas sandálias possuem asas. Pela mobilidade do seu estado líquido foi assim batizado o metal Mercúrio; também leva seu nome o planeta que completa em menor tempo a volta ao redor do Sol, tendo aparecido no céu noturno da antiguidade como o astro mais veloz.

Mensageiro entre os deuses do Olimpo e os homens, Hermes, o filho de Zeus, é simbolicamente o psicopompo ou intermediário entre a consciência (conhecido) e o inconsciente (desconhecido), o que explica que ele fosse considerado também o deus da magia e da adivinhação, das iniciações, das invenções, artes e ciências diversas. Hermes é ainda pastor de ovelhas, isto é, um guia espiritual que conduz o homem a seu destino. Estes também são atributos de Jesus: ele “é o caminho” (Jo 14), o “mediador entre Deus e os homens” (I Tim 2), “a porta” para a redenção e “o pastor” (Jo 10). Na cultura Iorubá, Èșù, (ou “Exu”) desempenha o mesmo papel de mensageiro, intermediário entre “Orun” (o mundo espiritual) e “Aye” (o mundo material).

A denominação Spiritus Mercurius (Mercúrio Espiritual ou Filosófico) demonstra que alguns alquimistas já compreendiam que as transformações buscadas em sua Opus (obra) deveriam ocorrer no espírito ou na psique, e não na matéria. Enquanto entidade abstrata, Mercurius representa uma personalidade psíquica inconsciente que serve de guia ao indivíduo que busca o autoconhecimento. Ele, em seu caráter de mediador, contém em si os opostos, como masculino e feminino, quente e frio, alto e baixo, luz e trevas etc., representando a possibilidade de encontrarmos o caminho conciliatório que resolva uma oposição aparentemente intransponível (JUNG, 2011e). Seu arquétipo, inspiração para a história de Expedito (saída de dentro de uma caixa de relíquias), está presente em diversos mitos, entre eles o do tesouro ou espírito preso numa garrafa que está enterrada aos pés de uma árvore – daimon ou espírito familiar e auxiliar que habita nosso inconsciente (debaixo da terra). Este, no entanto, é enigmático e imprevisível como os sonhos, fugidio como uma gota de mercúrio. Na história que herdamos do folclore português, era apenas após um prolongado ritual que um homem conseguiria obter o seu próprio “Famaliá” (conhecido também como “cramulhão” ou diabinho da garrafa, uma versão do homúnculo da alquimia, visto pela perspectiva cristã como espírito maligno), que deveria prender numa garrafa, trazendo-lhe riqueza e sucesso dali em diante.

Para Jung, a ocorrência de um conflito de difícil resolução na neurose “é uma regra tal, a ponto de se poder dizer que é impossível analisar alguém enquanto não se chega a um problema impossível. Quer dizer, um problema sem saída” (JUNG, 2014, p.43). Quando encontramos tal problema estamos encurralados, mas estamos também diante da possibilidade de uma transformação. No Cristianismo, antes da ressureição e da ascensão gloriosa aos céus está a Via Crucis, simbolizando o sofrimento psíquico que atinge o seu ápice no estado de suspensão da cruz: ali o homem encontra-se imobilizado diante de duas alternativas opostas e igualmente inaceitáveis (Jesus crucificado entre dois ladrões). É preciso aceitar a nossa Sombra, mas não é possível ceder a seus impulsos primitivos sem destruir tudo o que de mais elevado construímos. Aceitar a inevitabilidade do sofrimento e renunciar à satisfação de determinados desejos é o destino dos que procuram a cura das dores da alma. Não esqueçamos que, na mão esquerda, Expedito segura um galho de palmeira, a “palma do martírio”, representando o sacrifício sem o qual é impossível alcançar a iluminação.

Paulo Nunes – Médico graduado na UFBA em 2005.

Psicoterapeuta Junguiano pós-graduado no IJBA.

Atendimentos em Salvador. Contato: (79) 99859-1753 (Telefone e Whatsapp).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BUTLER, A. The Lives Of The Fathers, Martyrs, And Other Principal Saints; Compiled From Original Monuments, And Other Authentic Records V1. Kessinger Publishing, LLC 2010.

BÍBLIA ONLINE. https://www.bibliaonline.com.br. Acesso em 19 de agosto de 2019.

ENCICLOPEDIA CATÓLICA. Palma en el simbolismo cristiano. https://ec.aciprensa.com/wiki/Palma_en_el_simbolismo_cristiano. Acesso em 19 de agosto de 2019.

JUNG, C. G. Estudos alquímicos. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2011e.

JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis: Pesquisas sobre a separação e a composição dos opostos psíquicos na alquimia, vol 1. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2011m.

JUNG, C. G. Sobre sonhos e transformações: Sessões de perguntas em Zurique. Petrópolis: Vozes, 2014.

JUNG, C. G. Tipos psicológicos. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2013t.