Quem somos nós? Somos um corpo ou temos um corpo? Se temos, quem em nós é o “assassino interior” que quer destruí-lo quando a insuportabilidade do existir é o estilo dominante da consciência? Talvez nunca possamos saber essas respostas enquanto não soubermos olhar para o sentido da vida e para a ideologia da morte como duas linhas paralelas que se encontram no infinito.
No romance de Diana Chamberlain, “Segredos e Mentiras”, Noelle é uma parteira que morreu sem conseguir terminar a carta suicida que revelaria à uma mãe o crime que cometera há 16 anos. Ela roubara um bebê cuja mãe estava em coma. Esse roubo tinha como razão repor a uma outra mãe o recém-nascido que ela havia matado em estado de total inconsciência. O bebê morto foi enterrado como uma semente e sobre ele foi feito um jardim especial. Noelle cuidou desse jardim, no fundo de sua casa, como quem cuida de uma criança com vida.
Tara e Emy eram suas amigas-irmãs, que foram surpreendidas pelo suicídio de Noelle, pois ela nunca apresentou sinais de depressão, ansiedade, vazio existencial ou qualquer outro sintoma que poderia não tornar aquele ato tão surpreendente. Os mesmos remédios que lhe aliviavam as dores físicas foram transformados em veneno pelo “assassino interior”, que a fez ingerir em sua dose letal.
O funcionamento da consciência nos leva a dizer: eu tenho um corpo. Esse Eu é uma dimensão psíquica que rege as experiências conscientes e se relaciona com toda a dimensão imaterial que chamaremos de alma. Então, poderemos pensar em qual teria sido o sofrimento da alma de Noelle que fez esse Eu ceder lugar ao “assassino interior” que destruiu o corpo que habitava. O Eu é um complexo sujeito da consciência, mas não de toda a comunidade psíquica. Construímos, ao longo da vida, outros complexos que são capazes de atuar quando os afetos, que dialogam na psique, tornam-nos vencedores do Eu regente da consciência.
Noelle foi um bebê rejeitado. Amada pela mulher que a adotou, cresceu assistindo a luta dessa mãe como parteira leiga, mas que às escondidas resolvia a situação aflitiva de muitas famílias que a procuravam.
Poderíamos nos perguntar como essa outra mãe que a rejeitou atuava em Noelle como um complexo, que poderia ser, para ela, ainda que de forma inconsciente, a razão de matar o bebê de uma mãe e substituí-lo pelo bebê sequestrado de uma outra mãe. Dessa forma ela conseguiu que uma criança fosse criada por uma mãe adotiva, sem que nenhuma das duas soubessem, e deixou uma mãe biológica sofrendo por ter perdido sua filha.
No modelo junguiano, podemos pensar que, antes de surgir um Eu, havia um todo inconsciente que chamamos de Self, o arquétipo do destino, que precisa de um Eu para se realizar em consciência.
A relação entre o Eu e o Self acontece por meio do que chamamos de símbolos, que nada mais são do que a forma do oculto se revelar. Assim o jardim que Noelle cuidava com todo carinho compensava, na sua psique, o incômodo dos seus atos inconscientes.
A linguagem da consciência é literal, mas a da alma é simbólica. A compensação é uma autorregulação do sistema psíquico, mas, em casos de uma psicose latente, o Eu frágil facilmente é dominado pelo “assassino interior”.
Temos dois centros de decisões: o Eu e o Self. Enquanto o Self quer uma transformação e fala ao Eu por metáfora, o Eu é literal e abre caminhos a essa transformação pela da ideia da morte concreta. Quando nos relacionamos com o Self, a expressão é simbólica, mas, sem essa relação, ela é literal.
O impulso para uma vida mais plena e o impulso para a morte se confundem na busca da transformação. Se tivéssemos acesso a Noelle como paciente, em lugar de tentar reverter heroicamente a determinação da voz que diz “eu quero morrer”, o mais correto seria deslocar a questão para uma perspectiva simbólica: “o que precisa morrer em você?” ou “quem deseja morrer em você?”. Procuraríamos dessa forma as pistas sobre o “assassino interior” que habita a psique. Precisamos dar a ela uma oportunidade de elaborar os lutos que estão em jogo.
A psicologia analítica é uma ciência dos processos inconscientes. Ficamos atentos à maneira em que o oculto se revela. Noelle teve, como mãe que a adotou, uma parteira não autorizada e que constantemente transgredia para trazer novas vidas ao mundo. Noelle então compensa se tornando uma enfermeira-parteira autorizada, mas passa sua vida também como uma transgressora, transformando o seu crime em um jardim, símbolo de um espaço sagrado, que guarda um segredo protegido por uma mentira.
Nascimento e morte são opostos e, ao mesmo tempo, uma unidade. Uma coisa não existe sem a outra. Noelle pode ter desistido de viver por um segredo jamais revelado nem a ela mesma. No entanto, as amigas precisavam encontrar razões e, nesses casos, sempre as encontram e creem nelas.
Quando alguém conta ao analista o seu sofrimento, ele apenas escuta e procura encontrar um significado de como foram construídas aquelas ideias por trás desse significado. É como a vida de uma semente: expressa-se em vegetação depois que a enterramos. É assim que o oculto se revela, plantado, cuidado e fertilizado. O oculto é a necessidade da alma para se revelar em momentos especiais e de grande significado. Os problemas podem ser solucionados; os mistérios, apenas vividos. O complexo materno poderia ter sido o “assassino interior” que fez Noelle se libertar de todos os segredos e mentiras.
Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br / www.ijba.com.br