Sete minutos depois da meia-noite

Um menino de treze anos se prepara, com as fortes figuras da imaginação, para a perda da ligação física com sua mãe que vive a morte. Condenado a uma saudade que, diferente de um cordão umbilical, nunca poderá ser cortada. Ele repara essa dor folheando e experimentando os desenhos feitos por sua mãe até confundir a realidade com os sonhos.

O garoto chama-se Conor O’Malley. Seu pai tem uma outra família e vive distante geográfica e afetivamente. Enquanto isso, sua mãe sofre a fase terminal de um câncer de mama e o garoto experimenta a proximidade de um outro tipo de separação. É uma separação transformada num monstro representado em seu imaginário por um Teixo — uma árvore milenar e venenosa, porém com virtudes curativas. Esse é um recurso da natureza para ajudar a aliviar a dor de se perder uma mãe e nunca encontrar uma explicação de por que as pessoas morrem.

No Brasil, o livro “Monster Call” recebeu o título de “Sete minutos depois da meia-noite”, baseado no argumento de Siobhan Sowd quem, como o seu personagem, estava com uma doença terminal e morreu antes de concluir a obra. A obra foi então romanceada, de forma espetacular, pelo escritor Patrick Ness.

O sete é um número que em diversas culturas simboliza a totalidade ou a ideia de um ciclo que se cumpre. Em nosso mito cristão, Deus fez o mundo em seis dias e descansou no sétimo. Podemos olhar para o céu e contemplar as sete cores do arco-íris enquanto ouvimos os artistas usarem as sete notas musicais, intercaladas ao silêncio, produzirem sinfonias que trazem vida por nos lembrarem da morte. O livro de Ness foi levado para o cinema, a sétima arte. À meia-noite, inicia-se um novo dia no lugar daquele que se foi. É nesse momento, sete minutos depois da meia-noite, quando um ciclo se completa depois da morte do ontem, em que Conor acorda aflito de um pesadelo.

O pesadelo é um treino para que o garoto experimente a separação antes de acontecer. É como se Deus, em doses homeopáticas, ensinasse-nos a capacidade de suportar o insuportável. Não conseguimos responder por que a vida acaba nem o sentido da razão de existirmos, é tão incognoscível como a ideia de Deus. No entanto, cada um pode ter suas certezas e seus mitos para diminuir a angústia que causa o mistério. Deus pode ser tudo que não entendemos, mas o que não entendemos existe.

O pesadelo trazia o cenário de um cemitério com uma grande árvore que a tudo assistia, o Teixo. Ocorre um terremoto e a terra se abre enquanto Conor segura a mãe por uma das mãos até soltá-la no grande abismo no qual ela sumirá para sempre. Em meio à culpa por não ter conseguido salvá-la e à dor da perda, ele acorda gritando até constatar que foi um sonho. Mas a sua realidade que diferença tem do sonho? Essa é a questão que leva Conor a experimentar sua vida interior com as suas fantasias se fundindo com o mundo externo, proporcionando-lhe o remédio homeopático de Deus.

Em seus sonhos, ou em sua imaginação, o Teixo sempre lhe aparece como um grande monstro e o garoto vai aos poucos se relacionando com esse mestre, um pai verdadeiro como o seu avô materno já falecido, ou mesmo Deus, vestido como uma árvore que anda e fala. A primeira vez que a viu disse para si mesmo que era um sonho, mas ouviu o monstro dizer: “Quem pode dizer que a vida real é que não é um sonho?”.

Na escola, os colegas fazem Conor experimentar uma piedosa invisibilidade, exceto por Harry e seus amigos que o maltratam moral e fisicamente. Esse bullying diário funciona como uma compensação, tanto por sua culpa como também por fazê-lo existir, o que é a grande dor de sua alma: o deixar de existir. Muitos sofrimentos aos quais nos acostumamos devem-se a compensações da psique. A dor física atenua a dor da alma, por isso existem pessoas que se mutilam.

O desequilíbrio dessa compensação leva a uma explosão de toda uma energia acumulada que estava sendo suportada. Assim, quando Harry diz a Conor O’Malley que também o deixará invisível e não mais irá importuná-lo, Conor sente seu monstro irromper em si e com fúria agride Harry levando-o a ficar hospitalizado.

O monstro diz a Conor que “as histórias são criaturas selvagens. Quando você as solta, quem sabe o que podem causar?”. E conta ao garoto histórias que o fazem entender que nem sempre há um vilão e um bonzinho, as pessoas ficam entre um e outro. Essa é a forma de a nossa natureza psíquica lidar com o sim e o não, ajudando-nos a transcender o que separamos como opostos. Assim, aprendemos a lidar com o real e o imaginário, o bem e o mal, a morte e a vida.

A primeira história, como em um conto de fadas, leva o garoto a entender que sua avó não era tão má assim e que ele, apesar de se sentir culpado, poderá ser amado. A segunda leva a pensar na luta entre as indústrias farmacêuticas e os recursos da medicina natural do boticário. É dessa polêmica que é entendida a necessidade da fé, pois sua avó, como a medicina, prevê a morte de sua mãe como certa e não admite uma cura. Podemos acreditar em fadas e bruxas, mas fé não é acreditar em algo, é sentir uma verdade.

Em um mundo em que tudo passa e se degenera, o que haverá de estável, real e eterno? Talvez o amadurecimento que conseguimos até a morte física. Conor, estimulado pelo monstro de sua imaginação, finalmente admite a mais pura verdade. Diferente do seu pesadelo, segura bem uma das mãos de sua mãe e lhe diz que não quer que se vá e que a ama muito; enquanto também sabe que ela escuta o que ele diz no momento em que abandona seu corpo. Essa é a experiência de transcender o conflito de não querer perder quem se ama e o ter de perdê-lo. Para isso, torna-se necessário o símbolo que revela à consciência o que antes se escondia no inconsciente. E lá estava o Teixo, símbolo da longevidade, de nossos antepassados, do veneno e da cura.

Carlos São Paulo – médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br  / www.ijba.com.br