Por Ermelinda Ganem Fernandes
Estava andando em uma rua quando vejo dois cachorros com olhar carente. Um deles me ataca, mordendo o meu braço. Olho para o braço ensanguentado e sinto medo. Nesse momento tomo consciência que estou sonhando e resolvo acolher os cachorros. De repente, acordo.
O cachorro raivoso provavelmente representava uma emoção sentida por mim na época em que tive o sonho, porém não expressa. Os cachorros do meu sonho eram vira-latas que me olhavam com um olhar de criança abandonada, eram instintos e faros pedindo atenção. O que tornava este sonho especial era o fato de que eu estava consciente dentro dele, sendo capaz de direcionar a minha atenção para o acolhimento dos cachorros. Eu acabara de ter um sonho lúcido (SL).
O sonho lúcido, portanto, que a partir de agora vamos chamar de SL, é um estado mental no qual estamos conscientes de estarmos sonhando durante o sonho, sendo capazes de realizar diferentes atos de forma livre, espontânea e voluntária. Ele pode acontecer de forma natural ou através de treinamento.
A diferença entre o sonho lúcido e um sonho normal, e que no sonho normal somos expectadores, observamos o sonho do ponto de vista da primeira pessoa. Por mais estranhos que os acontecimentos estejam nós não temos consciência de que aquele enredo é um sonho. Fazemos parte da trama. Já no sonho lúcido, os acontecimentos bizarros acontecem e nós somos capazes de refletir dentro da trama, tendo consciência de que aquele acontecimento é apenas um sonho. Saímos de uma posição passiva para uma posição, muitas vezes, de controlador de eventos.
Imagine se fosse possível não despertar de um sonho lúcido, no qual você sabe que está sonhando? As possibilidades seriam infinitas: daria pra visitar lugares que você nunca foi, conversar com gente inacessível de outra forma, voar, se transformar em um bicho… aliás, pode começar a fazer sua lista do que você faria se pudesse despertar sua consciência dentro de um sonho, porque isso é perfeitamente possível. Falar com outras palavras.
No ocidente, a ciência oficial começou a pesquisar os sonhos lúcidos em 1975, na Universidade de Hull, Inglaterra, quando o pesquisador Keith Hearne, através da polissonografia (exame que estuda o sono através do registro simultâneo de atividade elétrica cerebral, movimentos dos olhos, atividade dos músculos, frequência cardíaca, fluxo e esforço respiratório, oxigenação do sangue, ronco e posição corpórea), começou a monitorar o sono de um outro cientista, Alan Worsley, que dormia profundamente. Eles buscavam testar em laboratório a hipótese de que se Worsley mexesse os olhos em um padrão pré determinado durante o sonho lúcido, Hearne seria capaz de observar e registrar esse momento durante o experimento. A leitura do eletroencefalograma que mapeava a atividade cerebral de Worsley confirmou: ele estava dormindo, mas ainda assim permanecia consciente o bastante para enviar sinais ao laboratório. Ele estava tendo um sonho lúcido.
A sinalização através dos movimentos dos olhos, que depois foi estudada por outro psicofisiologista, Steve La Berge, em 2000, indicava que as pessoas ficavam conscientes durante o sonho e repetiram a instrução do pesquisador, o que , portanto, seria uma forma de provar empiricamente a existência de um sonho lúcido. Outra descoberta de Laberge foi que esse tipo de experiência lúcida sempre acontece no quinto estágio do sono, o REM, no qual o corpo está totalmente paralisado com exceção das pálpebras.
Quando adormecemos, passamos por duas fases distintas de sono: uma com atividade cerebral mais lenta, chamada de não REM, e outra com atividade cerebral mais rápida, ou sono REM (do inglês, movimentos rápidos dos olhos). Em um indivíduo normal, o sono não REM e o sono REM repetem-se a cada 70 a 110 minutos, com 4 a 6 ciclos por noite. A distribuição das duas fases pode ser alterada por diversos fatores, tais como idade, ritmo circadiano, temperatura ambiente, ingestão de drogas ou por determinadas doenças, dentre outras. Na fase REM, apesar de haver um relaxamento muscular máximo, o cérebro está em plena atividade. Os sonhos ocorrem, predominantemente, na fase REM. No sonho lúcido o córtex pré-frontal, parte do cérebro responsável pela racionalização, fica ativo.
Mas o que seriam os sonhos, essas vívidas imagens sensório-motoras, experimentadas por nós no sono como se fossem reais apesar de se mostrarem frequentemente bizarras? Quando alcançamos a consciência em nossos sonhos, podemos nos perguntar: estamos visitando lugares dentro da nossa mente ou outros lugares, para além da nossa compreensão? Para onde vamos quando sonhamos?
Quando sonhamos entramos num lugar que não é consistente e nem consciente. Saímos do mundo consensual da realidade ordinária do mundo da vigília e penetramos numa espécie de mundo “virtual” da nossa mente, um espaço ficcional repleto de deuses, ninfas, heróis e criaturas míticas. Nesse mundo encontramos diversos personagens que são nossas experiências com tonalidades afetivas vestidas com as mais diversas formas de imagens. A partir dessa dimensão parece brotar tudo o que é criativo. Carl Gustav Jung, famoso psiquiatra suiço, criador da psicologia analítica, encontra no espaço onírico uma representação do inconsciente coletivo.
O inconsciente coletivo é como um sistema operacional biológico e complexo, ultra sofisticado, inato a todos os humanos, matriz de onde viemos e sob a qual construímos a nossa existência. Essa matriz contém aptidões virtuais de comportamento, os arquétipos, correspondendo a formas sem conteúdo, que ao serem preenchidas por experiências formam imagens subjetivas, que compõem a legião de personagens que habitam os nossos universos ficcionais.
Nos sonhos, ao nos desligarmos do mundo da vigília, entramos em contato com esses personagens inconscientes. Dessa forma, o antigo mestre, ou meu professor, num sonho não é apenas algum potencial intelectual de minha totalidade psíquica. Essa figura é a do mentor arquetípico que, por enquanto nesse sonho, usa as vestimentas desse ou daquele professor, muitas vezes que eu conheço ou que parece com um personagem de filme ou de um romance que li. Meu irmão e pai onírico não são nem representações de seus ‘eus’ vivos, nem partes de mim mesmo. São imagens de sonho que preenchem papéis arquetípicos. Para toda imagem inconsciente, algum arquétipo está sendo representado. Através dos sonhos lúcidos podemos conhecer e conversar com esses personagens arquetípicos, o que pode ser de grande valia para o nosso autoconhecimento e bem estar psicológico.
Os sonhos, para Jung, sempre foram seus guias, desde a mais tenra idade, para a sua vida cotidiana, as suas escolhas, os seus medos e incompletudes. Percebeu, a partir de sua própria autoanálise, que os sonhos contêm imagens e associações de pensamentos que não criamos através da intenção consciente. Eles aparecem de modo espontâneo, sem nossa intervenção e revelam uma atividade mental alheia à nossa vontade arbitrária.
Jung considera o sonho um retrato fiel da situação interna do sonhador. É, portanto, uma construção cheia de riquezas. O sonho não se esconde. Nós é que não conseguimos compreender sua linguagem. Muitas vezes, no sonho, encontra-se a solução de vários enigmas criativos. Como exemplo, Jung cita o caso do químico alemão Kakulé (século XIX). O referido cientista refere que quando pesquisava a estrutura molecular do benzeno, sonhou com uma serpente que mordia o próprio rabo. O sonho fê-lo concluir que esta estrutura referia-se a um círculo fechado de carbono, o que possibilitou a descoberta da estrutura do benzeno. A serpente que morde o próprio rabo é chamada de uróboro, um símbolo antiquíssimo da alquimia.
Na psicoterapia de orientação junguiana, a análise do mundo onírico é de suma importância porque o sonho é considerado o portavoz do inconsciente coletivo, com a função de revelar os segredos que a consciência desconhece. Considera, assim, como um produto natural da mente, do qual podemos esperar indicações ou pelo menos pistas para as tendências básicas dos nossos processos mentais.
A possibilidade de diálogo do consciente (o nosso mundo vigil) com o inconsciente (o mundo virtual, que aparece nos sonhos e na imaginação) encontra-se na base da psicologia junguiana e equivale a uma navegação por mares desconhecidos. Graças a essa navegação conseguimos evoluir e adquirir conhecimento. Quando estamos conscientes dentro no ambiente onírico, somos capazes de interagir com os personagens inconscientes, os arquétipos “vestidos” e personificados, o que promove um aumento no bem estar mental e emocional. Podemos, num movimento, exercitar a nossa consciência para torná-la mais forte e de boa vontade. Com essa técnica, ajudamos ao sujeito encontrar uma vida dentro das imagens oníricas. A consciência pode aprender a interagir e se aproximar das imagens com respeito. Prestar atenção ao que as imagens querem fazer. Essas imagens envolvidas com o mistério vão gradativamente mostrando a trama dos significados que estão ocultos nas nossas decisões e escolhas. O desenvolvimento da nossa personalidade está em se relacionar com a natureza através de nossas figuras da imaginação.
Atualmente várias pesquisas tem sido feitas com sonhos lúcidos, principalmente de base psicofisiológicas. No Brasil, por exemplo, o pesquisador Sergio Arthuro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte publicou um estudo inédito concluindo que estudar sonhos lúcidos pode ser a chave para chegar ao controle de pesadelos, principalmente no transtorno de estresse pós-traumático ou depressão grave. Para o pesquisador, o aprendizado do sonho lúcido diminue a frequência e a intensidade dos pesadelos. A lucidez no pesadelo pode diminuir o medo, pois a pessoa que sofre percebe que tudo não passa de sua imaginação. Pode-se usar também a tática de conversar com os personagens (monstros) do pesadelo, buscando-se descobrir se os mesmos têm alguma razão específica para estarem ali.
Mas como nós podemos desenvolver a habilidade de ter sonhos lúcidos? Algumas dicas poderão te ajudar:
Existe uma série de técnicas para se obter os sonhos lúcidos; uma das mais conhecidas é a MILD, criada pelo próprio LaBerge. Ela é dividida em quatro passos:
1) Depois de acordar de um sonho, no início da manhã, repassá-lo várias vezes até memorizá-lo.
2) Quando adormecer novamente, repetir para si próprio: “Na próxima vez em que estiver sonhando quero me lembrar de reconhecer que estou sonhando”.
3) Visualizar a volta para o sonho ensaiado, com uma diferença: dessa vez, concentrar-se em perceber que está sonhando.
4) Repetir os itens dois e três até dormir ou sentir que a sua intenção ficou fixada.
Por fim, os sonhos lúcidos são um portal de entrada para um mundo novo, repleto de aventuras e autoconhecimento. Nesse mundo tudo é possível. Você pode navegar por mares e descobrir tesouros em terras distantes, conhecer criaturas fantásticas, aprender lições e, sobretudo, travar diálogos com partes desconhecidas de você mesmo. Para isso é necessário coragem, persistência e muita motivação. Como nos relata o próprio LaBerge (1990, p. 22-23) num sonho que teve:
“Sonhei que estava no meio de uma briga na sala de aulas; uma multidão furiosa vociferava, atirando cadeiras e trocando socos. Um bárbaro enorme e repugnante, de rosto marcado pela varíola, o Golias entre eles, estava me segurando com mão de ferro e não me deixava escapar, por mais desesperadamente que eu tentasse. Nesse ponto percebi que estava sonhando e, lembrando-me do que havia aprendido por ter lidado anteriormente com situações análogas, imediatamente parei de lutar. Logo que percebi a luta era um sonho, fiquei sabendo que o conflito, causado por uma questão de princípios, era comigo mesmo. Estava claro que aquele bárbaro repulsivo era a personificação de alguma coisa que eu queria negar e da qual queria me ver separado. Talvez fosse apenas a representação de alguém ou de alguma propriedade de outra pessoa, que eu não apreciava. Mas como, seja lá o que fosse, aquela coisa estava me sensibilizando íntima e profundamente o suficiente para que eu tivesse aquele sonho. Fiquei sabendo que o caminho da harmonia interior estava em aceitar como parte de mim mesmo qualquer coisa que pudesse encontrar em mim (até aquele bárbaro odiento). Invariavelmente, agir dessa forma resolvia os meus conflitos do sonho e me levava para mais perto da minha meta de auto-integração.”
Quando estamos presos a algo por meio de uma emoção maior e mais forte, não conseguimos sair a não ser que tenhamos uma vontade livre que supere tais emoções. Mesmo que o sonho lúcido nos leve ao confronto com monstros e dragões repugnantes, estarmos conscientes e dispostos a enfrentá-los já é um grande passo no caminho para a nossa grande viagem do ser, que é a busca de si mesmo.
Sendo assim, bons sonhos e boa viagem!
Ermelinda Ganem Fernandes é médica, psicoterapeuta junguiana, doutora em Engenharia e Gestão do Conhecimento pela Universidade Federal de Santa Catarina e coordenadora do Curso de pos-graduação em criatividade e facilitação de grupos numa abordagem junguiana do Instituto Junguiano da Bahia, onde atua também como psicoterapeuta, docente e supervisora dos cursos de formação em psicoterapia analítica.
Faz parte do Núcleo de Estudos e Desenvolvimentos em Conhecimento e Consciência, do(a) Universidade Federal de Santa Catarina.
Referências bibliográficas onde você pode conhecer mais sobre sonhos lúcidos:
Laberge, Stephen. Sonhos lúcidos. São Paulo: Siciliano, 1990.
Mota Rolim, Sérgio Arthuro. Aspectos epidemiológicos, cognitivo-comportamentais e neurofisiológicos do sonho lúcido. /Sérgio Arthuro Mota Rolim. – Natal, 2012. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Biociências. Programa de Pós-Graduação em Psicobiologia.
Monteiro Muniz, Cleber. Sonhos lúcidos: o surgimento da lucidez onírica e o seu estudo. Ciênc. cogn., Rio de Janeiro , v. 5, n. 1, p. 50-66, jul. 2005 .
Rodriguez de Sá, Jose Felipe; Fernandes, Ermelinda Ganem. Psicologia analítica e a interpretação dos personagens dos sonhos lúcidos. Fractal: Revista de Psicologia, v. 28, n. 1, p. 146-152, jan.-abr. 2016.
Sonhos Lúcidos – Dylan Tuccillo, Jared Zeizel e Thomas Peisel. Sonhos lúcidos. São Paulo: editora Sextante, 2015.