Ao acordarmos para a vida, notamos que estávamos dormindo e sonhando com uma existência ideal enquanto presos em uma matriz que nos faz experimentar o castigo de ver os dias se sucederem como se fossem todos iguais.
Sono é uma obra do escritor japonês Haruki Murakami, que traz o relato de uma mulher de 30 anos que, após um pesadelo, ficou dezessete dias sem dormir. Contrariando o que acontece nas insônias habituais, ela não sentia cansaço ou fadiga e se percebia mais “acordada” do que antes. Sentiu-se livre, via o mundo sob outra perspectiva e agora conseguia ser ela mesma.
Nas palavras do autor, “ela era uma mulher com uma vida normal. Tinha um marido normal. Um filho normal. Ela até podia detectar algumas fissuras nessa vida aparentemente perfeita, mas nunca chegou a pensar seriamente nelas. Até o dia em que deixou de dormir”. Seu marido dormia de forma profunda. Era difícil para ele acordar para a vida e perceber o amor não correspondido.
Essa mulher, enquanto acordada, apreciava o marido dormindo e se detinha na feiura. Chegou a desenhar aquele rosto como quem quer provar a si mesma que aquela fealdade era uma realidade palpável. Às vezes, nos apegamos a fantasias infrutíferas, como a de ter um parceiro para evitar a solidão, e apostamos que o amor irá brotar. Mas, somente bem acordados, seremos capazes de compreender que o amor nunca existiu. Aquela mulher vivia um modelo ideal de casamento e experimentava o sacrifício de uma vida em que tudo se repetia, como se fosse conduzida por uma matriz que a delimitava a fazer tudo dentro do previsível.
Enquanto dormimos, mergulhamos na inconsciência para trazer, a cada dia, a matéria com a qual tecemos o fio da vida até chegar ao seu limite. Entender essa linguagem veiculada pelos sonhos é saber escolher as cores que vão compor a existência; essa é a verdadeira arte de viver.
Hypnos é o deus do sono na mitologia grega. Algumas vezes é retratado como um rapaz dotado de asas, com uma flauta nos lábios, tocando doces melodias que trazem o sono dos homens. Morfeu, um de seus filhos, é o deus dos sonhos, que zela pelo sono do pai. Sua única filha chama-se Fantasia, a imagem das quimeras e dos desvarios.
Para dormir bem, precisamos desse embalo de uma música suave e doce, enquanto nossos sonhos resolvem nossos conflitos e processam nossas necessidades. No entanto, a protagonista acordou com um pesadelo em que um velho magro, envolvido em um agasalho preto, ia se destacando em sua visão. Este a fitava em silêncio com seus olhos penetrantes e ruborizados por vasos salientes que davam uma visão demoníaca. O idoso tinha nas mãos um regador. Ele jorrava água nos pés dela. Parecia que a água nunca iria parar de jorrar e os pés apodreceriam como plantas afogadas em excessos. Ela não sentia a água, mas ouvia seu barulho.
Quando acordou, algo morreu dentro dela. Nesse estado insone, quando o contato entre consciente e inconsciente foi perturbado, começou a ler Anna Karenina, de Tolstói. Já tinha lido no passado e só lembrava do seu começo que dizia “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.” e o seu final, quando o protagonista se suicida na linha do trem. É um romance em que a mulher revela sua infidelidade ao marido.
Nossa psique procura compensar o que estamos experimentando na vida, tomando como referência o ótimo vital, que é o caminho que devemos seguir. Essas imagens do sonho traduzem nessa metáfora, talvez, a experiência da sonhadora com o marido projetado em um futuro. Daí a imagem de um velho que acentua a feiura e isso o apavorou.
O homem regava seus pés além do necessário, para vicejar vida. Eram como plantas que apodreceriam por ter ultrapassada a justa medida. Embora ela escutasse, não sentia a destruição de sua base de apoio. Na estrada da vida, precisamos dos pés para caminhar com equilíbrio e assim obter autonomia.
É gratificante acariciar os pés da pessoa amada, dizendo palavras de carinho, mas apenas ouvir sem sentir compromete a sensualidade. Depois do sonho, a protagonista foi tomar banho. A seguir, desfruta de um conhaque Brandy — bebida francesa feita da destilação do vinho —, come chocolates e assim faz seu gozo com tudo o que o marido detesta: bebidas e chocolates. Ela pensava a lição que tivera com a mãe, uma mulher linda e esbelta que o envelhecer dissolveu tudo que era belo.
Seu marido era dentista e seguia a rotina de um trabalho que fazia toda a família viver os dias de forma igual. Ela tornara-se, mesmo sendo formada em Letras na universidade, uma dona de casa. Sua vida era feita de obrigações e não devemos esperar que o serviço que prestamos aos outros nos traga amor, pois a obrigação e o amor são incompatíveis. Além disso colocar o valor do outro em primeiro lugar, sem pensar nas consequências para nós mesmos, mostra que tudo aquilo que se passava por amor era um vínculo enraizado na necessidade de mútua dependência e no medo da separação. Sua individualidade não era validada.
Essa história é uma narrativa que não poderia ter um ponto final. A sensação de incompletude deverá continuar em cada um que lê esse conto. Todos nós precisamos alimentar a vida com as histórias, assim como quando éramos crianças e precisávamos dessas fabulações para ter uma visão melhor de mundo. Nascemos com a capacidade de amar e ser amado, mas esse potencial muitas vezes só se realiza por meio do sofrimento que brota do autoconhecimento. Quando o amor pelo marido e interesse de um pelo outro e pelo filho é legítimo, aí sustentamos os momentos difíceis por onde caminhamos na vida.
Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br / www.ijba.com.br