Por Carlos São Paulo
Uma charge na revista Charlie Hebdo anunciava o romance Submissão como as previsões do mago Houellebecq, um escritor francês ficcionista. Nessa obra o autor imagina uma França islamizada: mulheres se submetem ao patriarcado, aceitam a poligamia dos homens e perdem direitos humanos. No barulho midiático do lançamento desse livro, a redação da revista que trazia a caricatura do autor, foi atacada por dois muçulmanos. Eles portavam armas automáticas e, no silêncio das mortes, ouviu-se um grito: “O profeta foi vingado”. Não se sabe se o livro teria uma relação direta com o ataque; ou se este resultou apenas dos desenhos satíricos, do profeta Maomé, que profanou o sagrado do mundo islâmico.
Submissão, o livro polêmico do ano, conta uma história que se passa em 2022. Chega ao poder Bernard Bonabess do partido da Irmandade Muçulmana que faz coalisão com outros partidos na França. O homem ocidental adiposo e entupido de drogas de todos os tipos, sem uma vida organizada em rituais, não possui estrutura que lhe permita ter um modo de contemplar o sagrado dos mistérios da existência. Isso deixa um vazio que facilita a genialidade política de um muçulmano, Ben-Abbes, que faz acontecer a ascensão do Islã.
A Fraternidade Muçulmana, em lugar de colocar a economia no centro de tudo, aposta no aumento da taxa de reprodução e nos valores transmitidos por seus pais. O lema é: “Quem controla as crianças controla o futuro”. Os professores são todos muçulmanos. Separam as turmas por sexo a fim de aprenderem as leis do alcorão. Aprendem que laços familiares entre pai e filho não têm base no amor e sim na transmissão de uma competência e de um patrimônio.
Como o Admirável Mundo Novo, de Huxley, Submissão traz fragmentos de verdades. Não foi escrito para dizer o que vai acontecer, mas o que as pessoas temem que aconteça: a submissão absoluta da mulher ao homem, e do homem a Deus – como é no Islã.
O mundo islâmico é orientado pelo mito, por isso se volta ao passado como quem procura uma perfeição primordial que foi perdida e se quer resgatá-la. É uma busca que anula o criativo. Criar é desobedecer e dirigir-se ao futuro traindo a tradição. Por outro lado a cultura ocidental, como produto do logos, deixa de compreender a importância do papel dos mitos.
O mundo muçulmano veste as mulheres com uma burca concreta. Os ocidentais – homens e mulheres – constroem burcas que não são físicas, são míticas. Com essa burca mítica, habitamos um universo falso e estreito que nos impede de transitar na vastidão das profundezas do nosso mundo interior para nos adaptarmos a ele.
O mistério cósmico que chamamos de Deus, enquanto esses outros povos o chamam de Alá, necessita da consciência do ser humano para existir. C. G. Jung chamou de “Processo de Individuação” ao caminho que deveremos trilhar em busca da totalidade do ser projetada nessa imagem de Deus. Ele abarca não só a perfeição como também a imperfeição. Esse “Processo de Individuação” depende do quanto aprendemos a sacrificar a vaidade e o orgulho para aprendermos com o outro que nos afeta. Nossos conteúdos inconscientes se revelam por meio de tudo que nos incomoda no outro. Surge assim a xenofobia e todas as outras situações que dizemos não suportar.
Enquanto os islâmicos não toleram o secularismo, a laicidade e o materialismo ateu; nós ocidentais falamos dos mistérios procurando dissolvê-los no caldo quente da lógica. A torre de Babel que construímos não nos permite escalar para compreender os mistérios sem deixar de falar uma língua diferente do outro. Afinal o mundo interior é tão singular quanto nossas impressões digitais. É nesse interior que habita nossa verdade na forma de mitos. Onde encontrar o sagrado para merecer nosso sacrifício?
Construímos líderes que quando desvestidos de suas “burcas” revelam que o seu sagrado é o capital. Jung afirmava que o que mais nos atrapalha ser religioso, para viver uma vida simbólica, são as próprias religiões. Religiões que traduzem os mistérios da existência de forma simplificada e conveniente, para erguer um altar e colocar um deus inimigo da totalidade, unilateral, um antideus.
Precisamos de um mito que dê conta de uma vida simbólica. Não precisamos provar a existência de um filho de Deus ou um profeta, mas nos permitirmos a orientação pela máxima de nos amarmos para poder conseguir amar o outro. É o mostrar-se sem a “burca”. Aceitar o outro também desvestido e abraçá-lo com seus odores agradáveis e desagradáveis. Esse é o sacrifício para uma humanidade melhor.
O livro de Houellebecq pode ser uma previsão como a de Cassandra. Na mitologia grega, Apolo, apaixonado por Cassandra, lhe confere o dom da profecia em troca do seu amor. Ela aceita o dom, mas se recusa a amá-lo. Furioso, o deus lhe cospe na boca e a amaldiçoa para que, mesmo com suas previsões corretas, nunca mais ninguém a compreenda ou nela acredite.
Dessa forma, enquanto o Islã olha para traz e vive um mito rígido e unilateral, de forma inconsciente, vinga-se dos mongóis – que no século XIII destruíram sua cultura – a nos confundir, no ocidente, com esses povos do seu passado, sem perceber que olhamos apenas para uma direção e vestimos “burcas” míticas que nos escondem de nós mesmos. Aqui experimentamos um mundo concreto de concreto e desvalorizamos o simbólico que não se transforma em capital.
__________________________________________________________________________________________________________
Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br