Trem noturno para Lisboa

Por Carlos São Paulo

Peguei o Trem noturno para Lisboa e fiz uma viagem para as regiões mais intensas do meu ser. O maquinista era um escritor suíço chamado Peter Bieri, um professor de filosofia em Berlim, que se lançou no mundo literário com o pseudônimo de Pascal Mercier. O mergulho nesse livro me deu a sensação de ler dois livros cativantes ao mesmo tempo. Apropriados para uma fase da vida em que a consciência da mortalidade nos rodeia como uma fita que começa a apertar, nos ameaçando asfixiar. É o momento em que sentimos a necessidade de pensar na morte de uma forma que nos alivie desse tormento. É quando ter filhos, nos dando a sensação de imortalidade simbólica e, assim, nos afastar da angústia existencial.

O personagem Raymund Gregorius, conhecido como Mundus, é metódico e tem a fama de nunca errar. Vive uma vida com o enfado e o asco das palavras sempre iguais, escritas e ditas. Em sua rotina, depara-se com uma moça desesperada no meio de uma ponte e a escuta pronunciar uma frase em português. Encantado com a sonoridade dessa língua, decide conhecê-la melhor. O erudito professor de línguas antigas vai até um sebo e adquire o livro de um autor português chamado Amadeu de Almeida Prado. Uma espécie de ourives das palavras, que o arranca da apatia quando encontra as expressões imaculadas que não se repetem como os acontecimentos de sua vida.

Mundus mergulha na leitura, nessa outra língua, e é levado a transformar sua vida em um caminho substancial que dá sentido ao viver. No meio de uma aula, levanta-se e, quando percebe, já está num trem para Lisboa, para inveja de todos aqueles que, como ele, se prendiam à rigidez dos trilhos sem a liberdade de seguir outros caminhos. Ele descobriu que “é um engodo achar que os momentos decisivos de uma vida, em que seus rumos habituais mudam para sempre, sejam necessariamente acompanhados de uma dramaticidade ruidosa e estridente, acompanhada de grandes surtos. (…) na verdade, a dramaticidade de uma experiência decisiva para a vida é de natureza inacreditavelmente silenciosa.”.

A vida de Mundus passa a ter um sentido fora dos trilhos. E, como um trem que descarrila, faz do acidente de sair de sobre a linha rígida em que viajava o sentido maior da existência: a criatividade ou a desobediência. Nasce aí a consciência de suas possibilidades de olhar o mundo por outro ângulo. Na obra de Amadeu, a frase: “A vida não é aquilo que vivemos, é aquilo que imaginamos viver. Apenas pela morte o tempo é uma coisa viva”. À medida que lê o livro, a sua vida escorrega devagarzinho. E, depois, em rápidos movimentos, como um vagão que se vê isolado dos outros, busca o sentido para uma existência saudável.

Em busca do autor da obra que o transformara, Mundus converte-se num verdadeiro detetive e descobre que Amadeus Prado já morrera faz 30 anos. Porém o contato com várias pessoas da história desse homem fê-lo aprender o quanto o regime de Salazar prejudicou a vida desses indivíduos e, especialmente, a do encantador Amadeus. Mundus fixa-se na pergunta: “Se é verdade que apenas podemos viver uma pequena parte daquilo que há dentro de nós, o que acontece como todo o resto?”.

Um encontrão entre Mundus e um passante desatento, fez com que ele quebrasse seus óculos e tivesse agora a oportunidade de enxergar esse mesmo mundo de outra forma. Fatos que nos aborrecem, ou parecem trazer prejuízos materiais e de ocupação do tempo, podem também nos ocasionar a consequência de uma mudança de visão do mundo e das diferenças entre os movimentos que antes eram vistos como iguais. Agora ele percebe que um sentimento não é idêntico quando se repete. Algo parecia estar surgindo e esperando que a repetição fosse vista de outro modo. É como se a pedra de Sísifo, personagem da mitologia grega, rolasse montanha abaixo e montanha acima. Mas que a cada vez que prestássemos atenção, de perto, percebêssemos que o caminho nunca é o mesmo, porém, de longe, só notamos a repetição cansativa e insuportável como a imortalidade.

O amor pelos livros fez de Mundus um homem livre e o guiou nos caminhos de uma paixão. Aprendeu que uma vida apenas para executar tarefas deixa o dia-a-dia exaustivo. Não se percebe a intimidade das diferenças. Segue o caminho inexorável dessa viagem que se faz até o destino final de encontrar a estação incognoscível da eternidade. Ai o imaterial torna-se a expressão da matéria. O dentro é o que dá sentido a existir o fora. A morte é o que dá sentido a existir a vida. Necessitamos da experiência de navegar na esteira dos sentimentos que a poesia conecta à nossa tentativa de encontrar uma lógica para o existir.

Mundus, um homem livre, estava preso às obrigações do cotidiano que tomara para si. Ao colidir com a obra de Prado, descobriu-se com a liberdade de existir sem ter que ser escravo das obrigações necessárias para preservar uma autoimagem. E se permitiu dela abusar. Talvez o que aconteceu foi que Mundus aprendeu o amar Deus por meio da obra de Amadeu.

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Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br