Por Carlos São Paulo
No centenário de Nelson Rodrigues, analiso aqui a obra que o lançou para o sucesso. Feita para o teatro e voltada para uma realidade de cunho psicológico, foi ao palco em 1943. Nessa história uma mulher chamada Alaíde é atropelada por um carro, torna-se notícia de jornal e, enquanto é operada, entra em um estado de quase morte quando suas lembranças contam a sua história para o leitor, e sua alucinação revela aspectos de sua vida não vivida.
Na época de Nelson, a sexualidade era um aspecto da natureza em que a ideia religiosa prevalente reprimia. Como dizia Campbell, vivia-se uma ideia de um Deus contra a natureza e uma natureza contra Deus. Numa linguagem junguiana, o eu estaria evitando viver aspectos da natureza da psique necessários ao desenvolvimento.
A obra de NR exerce um fascínio, possivelmente, por trazer a cisão Apolo-Dionísio tão comum em nossa sociedade. Apolo é o deus da estética e da contenção; enquanto Dionísio é o deus da catarse e da liberação. É o equivalente à cisão mente-corpo. Em suas peças, nossos aspectos Apolíneo lutam para sustentar uma estética e acabam por serem possuídos pelos aspectos Dionisíacos – um lado primitivo a que chamamos de sombra. Dionísio que também é o deus da fertilidade e das orgias, transita o tempo todo em suas obras literárias, buscando a renovação da vida, pois a sombra traz aversão, mas também a curiosidade. De acordo com os estudos junguianos da tipologia, Nelson Rodrigues poderia ser considerado um intuitivo com uma função pensamento bem diferenciada. Os intuitivos são indivíduos que facilmente se afastam da realidade palpável, com muita facilidade em sonhar e tornarem-se enigmáticos. Na arte, esses tipos apresentam coisas extraordinárias e banais, belas e grotescas, sublimes e ridículas. Em sua vida privada, ele, como muitos homens de sua época, tinham a mulher ainda presa à imagem materna ou sagrada, o que gerava uma cisão para garantir a pureza e a sexualidade em lados opostos. Aí surgem as “Madalenas” em oposição às “Virgens Marias”. Essa era a dificuldade do homem dividido entre o sagrado e o profano que não consegue integrar os aspectos sombrios e espirituais de sua anima, o que eclodiu em sua obra por meio de seus personagens femininos como Alaíde.
Alaíde era uma recatada moça, adaptada à sociedade, que disputou um noivo com a irmã. Ao casar-se com ele, passou a viver certo desinteresse e frustração pela vida de casada. Para a sua família, o que importava era que uma de suas filhas se cassasse com o abastado empresário. A disputa entre as irmãs só se revela ao leitor nas lembranças e delírio de Alaíde enquanto está sendo operada. A peça escrita em três planos: o da realidade em que os jornais anunciam o atropelamento; o da alucinação em que no EQM (Estado de Quase Morte) realiza os seus desejos e necessidades reprimidas; e o da memória onde são lembradas as escolhas geradoras de culpa que envolviam a decisão na oportunidade em vencer a irmã. O EQM tem intrigado a ciência pelo fato de as pessoas que retornaram a viver relatarem experiências, o que faz pessoas acharem que isso prova a existência de vida após a morte; enquanto outras explicam por neuroquímica e veem como resultado de alterações de um cérebro em sofrimento. Alaíde, por ser um personagem ficcional, vive essa experiência sem voltar à vida para nos contar. O processo de alucinação de Alaíde acontece como nos sonhos. Há uma compensação das experiências vividas fazendo com que as emoções em jogo, antes reprimidas, se expressem e se organizem numa nova forma de experimentar a vida. É a busca natural do equilíbrio. Essas manifestações são feitas por recortes do tecido psíquico que se vestem em imagens associadas àquelas experiências emocionais. Dessa forma aparece a Madame Clessi, uma prostituta que morrera assassinada por um adolescente. Alaíde, quando se mudou com os seus pais para uma casa que pertencera à cafetina, teve acesso ao diário daquela mulher e se encantou com aquela vida de liberdade sexual. Esta era portanto a manifestação do ideal de mulher liberada que rompe com a mordaça da sociedade da época.
Em seu delírio, Alaíde assassinou o marido. Mas traz isso na forma de dúvida. Talvez seja a dúvida que ela teve em tomar decisões para a morte da relação, que ela não teve coragem de fazer acontecer. Para ela a liberdade de ser fora sufocada no modo de viver. No passado da humanidade, situações desse tipo eram compensadas porque existiam os cultos como as festas de Dionísio. Havia nesses rituais uma adesão maciça das mulheres reprimidas de Atenas, o que permitia a libertação dos tabus, regulamentos e convenções, facilitando assim a vida delas em sociedade.
Em Vestido de Noiva as fantasias irrompem no estado de rebaixamento da consciência para explorar as verdades mais profundas de um ser. É a revelação de uma verdade maior por trás das mentiras que nos conduzem pela vida quando nos vestimos de falsas roupas para ilusoriamente encontrarmos o amor do outro. A sociedade cria uma forma ideal de ser para os seus membros e muitos de nós, quando nos sentimos fora desse ideal, tentamos esconder na infelicidade essa força do mundo sombrio da existência, negando a si mesmo o direito de viver e ser feliz com o outro.
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Carlos São Paulo – Médico e psicoterapeuta junguiano. É diretor e fundador do Instituto Junguiano da Bahia. Coordena os cursos de Pós-graduação em Psicoterapia Analítica, Psicossomática e Teoria Junguiana. carlos@ijba.com.br